A competência especializada dos juízos do comércio para questões de corporate governance

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I. No acórdão do STJ de 5-jul.-2018 (Abrantes Geraldes), Proc. 11411/16.0T8LSB.L1, discute-se a competência especializada dos juízos de comércio, a propósito de uma ação intentada por um sócio minoritário de uma sociedade comercial contra essa sociedade e contra uma outra, na qual peticionou a declaração de nulidade de dois contratos que, na sua perspectiva, «concretizam uma estratégia — contrária à lei, à ética e aos bons costumes — de delapidar e dissipar o património social da 1ª R. e dos sócios minoritários da mesma, rectiusdo ora A., dada a atividade conluiada das RR. Contra [sic] o A.»

Entendeu o STJ que a questão sub judice não se enquadra na competência especializada dos juízos de comércio por não se tratar de uma ação relativa a “exercício de direitos sociais”, [art. 128.º/1, c) da Lei de Organização do Sistema Judiciário (LOSJ)], antes caindo na competência residual dos juízos cíveis onde a ação foi instaurada.

II. O STJ começou bem, ao enquadrar teleologicamente a delimitação da competência em razão da matéria dos juízos de comércio. Está em causa um escopo de justiça material e um outro de celeridade na administração da justiça.

Quanto ao primeiro: estando em causa conflitos emergentes de aspetos específicos do direito comercial ou do direito das sociedades comerciais, impõe-se uma adequada especialização dos juízes para assegurar a correta aplicação da lei na composição dos interesses em presença. Simultaneamente,

Quanto ao segundo: a especialização deveria permitir uma resolução mais célere dos processos.

III. Andou também bem ao reafirmar a sua jurisprudência de que o “exercício de direitos sociais” deve ser interpretado em sentido amplo, compreendendo não apenas o exercício de direitos dos sócios perante a sociedade, mas todos os direitos da sociedade, dos sócios, dos credores sociais e de terceiros que sejam conferidos pela lei societária ou pelo contrato de sociedade.

Convoca aliás uma concretização interessante desta perspectiva, num caso sobre contrato de suprimento, incluído na competência destes juízos porque «apenas ganha relevo no seio da regulamentação das sociedades comerciais».

IV. Porém, andou mal ao sustentar que o caso sub judice não se enquadrava na competência especializada, assim delimitada, dos juízos do comércio, por entender que o mesmo não convocava questões específicas de direito das sociedades:

«5. Incidindo sobre o caso concreto, não é o facto de o A. ser sócio ou sócio-gerente de uma sociedade comercial que é demandada que permite concluir que a ação contra esta dirigida visa o exercício de direitos sociais. Necessário seria que a concreta ação interposta emergisse da aplicação de normas que regem especificamente as sociedades comerciais.

O facto de a procedência da ação determinar porventura a valorização patrimonial da sociedade respetiva e de, indiretamente, poder beneficiar o A., aumentando o valor da sua participação social ou incrementando, porventura, os dividendos que potencialmente lhe podem ser atribuídos,não é suficiente para se poder afirmar estarmos perante um ação em que se exercita um direito social.

Embora ao caso presente esteja subjacente a existência de um conflito entre um dos sócios-gerentes e outros sócios gerentes da 1ª R., relativamente a medidas de gestão adotadas no seio da administração da 1ª R.,não assoma nele qualquer especificidade que justifique que a resolução do litígio seja atribuída a juízos do comérciojá de si tão sobrecarregados com outros processos tão complexos ou tão morosos como o são os de insolvência ou de revitalização ou as ações de anulação de deliberações sociais.

Na realidade, considerando quer o pedido quer a respetiva fundamentação, estamos perante uma açãona qualo A. ocupa uma posição semelhante àquela em que porventura estaria qualquer outro interessado, sendo que apenas de modo reflexo dela podem emergir efeitos que se reflitam na sua esfera jurídica.

Estão fundamentalmente em causa atos praticados por certos gerentes da 1ª R. em alegado conluio com a gerência da 2ª R. na qual o A. não tem qualquer participação social,sendo-lhe aplicável um regime jurídico que emerge do direito civil em geral, sem especial conexão com o regime que emerge do Cód. das Sociedades Comerciaise, dentro deste, com o preceituado acerca de direitos sociais.

Enfim, para além de a ação também ser dirigida contra uma outra sociedade comercial, não está verdadeiramente em causa o exercício de um direito social, antes o exercício do direito de ação numa área em que acabam por dominar as regras gerais do direito civil.»

V. Andou efetivamente mal. Os fundamentos da nulidade dos contratos em causa são especificamente societários, sendo certo que o caso só pode ser solucionado no quadro deste ramo do Direito.

Em particular, para aferir da nulidade dos contratos com fundamento na contrariedade aos bons costumes (art. 280.º/2 CC), impõe-se uma concretização casuística desta cláusula geral, a qual, no domínio societário, ganha colorações específicas que justificam a afirmação de uma “deontologia societária”[1].

O caso convoca ponderações específicas sobre os conflitos de interesses entre sócios que em tempos desenvolvemos num estudo detalhado, publicado numa obra do Governance Lab[2].

Infelizmente, o STJ não foi sensível ao correto enquadramento do caso.

 

[1]Cfr. o nosso Da administração à fiscalização das sociedades, 2015, 372-381.

[2]“Conflito de interesses entre accionistas nos negócios celebrados entre a sociedade anónima e o seu accionista controlador”, in Paulo Câmara(coord.), Conflito de interesses no direito societário e financeiro: Um balanço a partir da crise, 2010, 75-213.​