Gabriela Figueiredo Dias
Presidente do Conselho de Administração da CMVM
Boa tarde,
É uma honra estar convosco aqui hoje no lançamento de um projeto que merece atenção e apoio pela importância do tema que procura investigar e pela ambição e impacto dos resultados pretendidos[1].
Quero por isso aproveitar para, desde já, agradecer o amável convite que me foi dirigido pela professora Sara Falcão Casaca, e felicitá-la, bem como à sua equipa e ao ISEG, pelo trabalho que se propõem desenvolver nos próximos dois anos e meio, e cujos resultados todos aguardamos com expetativa. A igualdade de género é um tema incontornável, que importa conhecer, documentar e debater. Só assim poderemos ambicionar desenhar e fundamentar as melhores políticas para a sua promoção em Portugal.
Constituindo um dos objetivos de desenvolvimento sustentável da ONU, a promoção da igualdade de género é hoje encarada pela CMVM como um foco de atuação prioritária, interna e externamente, enquanto elemento estruturante da organização social e dos mercados, com impactos relevantes no desempenho empresarial e económico.
É hoje cada vez mais reconhecido que as diversidades, de género ou outra, constituem uma mais valia relevante para qualquer Conselho de Administração ou empresa que opere num mercado globalizado, dinâmico e criativo. A variedade de pensamento e experiências; a maior representatividade de diferentes grupos sociais – e com ela, uma maior legitimação na decisão; e o alargamento das bases de recrutamento potencial deveriam constituir razões suficientes para a perceção dessas vantagens.
Infelizmente, como já vimos aqui hoje, num retrato que de resto se reproduz por esse mundo fora, estas vantagens não são ainda suficientemente evidentes ou, sendo-o, perdem para outros fatores, como a inércia e a resistência à mudança, ou ainda, mais expressivos, os padrões, oportunidades e contextos sociais que continuam a limitar o acesso de mulheres a cargos de topo das organizações.
Parte da relevância da investigação proposta em “Mulheres nos Órgãos de Gestão das Empresas – Uma Abordagem Integrada” resulta exatamente de se propor a olhar para o tema sob vários prismas, procurando objetivar impactos em processos e resultados dessa diversidade. Com este trabalho, estou certa, ficaremos melhor preparados para enfrentar e mitigar a divergência que observamos entre as vantagens percecionadas da paridade de género; e aquelas que continuam a ser a práticas empresariais e sociais dominantes.
Na nossa perspetiva, a desconsideração dos elementos ambiental, social e de bom governo pelas empresas constitui um risco para as próprias, e para a realização dos projetos económicos em que assentam; bem como uma ameaça ao equilíbrio do ecossistema dos mercados de capitais. A promoção da sustentabilidade financeira e, em última análise, a promoção do próprio mercado de capitais, da economia e do bem-estar social constitui, por isso, uma das mais prementes preocupações com que hoje nos deparamos.
Um dos desafios com que a promoção da igualdade de género – como, em geral, a introdução de qualquer consideração ambiental, social ou de boa governance– se depara é o ceticismo dos que a antecipam como um entrave à maximização do lucro para os acionistas no curto prazo. Tende por isso a ser vista como uma importante e inegável preocupação da comunidade, mas que só deve ser endereçada e acomodada se não puser em causa o propósito prioritário de criação de valor. Dito de outro modo: de acordo com o padrão em que nos inserimos, não constitui missão da empresa atuar sobre as desigualdades de género, ou as desigualdades sociais em geral, sendo estes objetivos apenas viáveis na medida em que contribuam positivamente para a sua missão prioritária de maximização do valor para o acionista.
Perante este cenário, e considerando que as interpretações dominantes sobre lucro, valor e função social das empresas foram progressivamente determinando uma falha de mercado, o legislador, nacional e comunitário, entendeu assumir-se como acelerador da mudança, estabelecendo regimes vinculativos de promoção da igualdade de género no seio das empresas:
- Ao nível da divulgação de informação não financeira,exigindo que a empresa preste as informações bastantes para uma compreensão exata, por parte da comunidade, da evolução, do desempenho, da posição e do impacto das suas atividades, referentes, entre outras, às questões da igualdade entre mulheres e homens[2];
- Ao nível da divulgação da política de diversidade, exigindo que a empresa faculte, no relatório anual sobre governo das sociedades, uma descrição da política de diversidade aplicada pela sociedade relativamente aos seus órgãos de administração e de fiscalização, nomeadamente em termos de idade, sexo, habilitações e antecedentes profissionais, os objetivos dessa política, a forma como foi aplicada e os resultados no período de referência[3];
- Ao nível da previsão de um regime de quotas, exigindo que os órgãos sociais das empresas emitentes de ações admitidas à negociação em mercado regulamentado passem progressivamente a apresentar uma composição equilibrada em termos de género, de acordo com um sistema de quotas: para cada órgão de administração e de fiscalização cuja assembleia geral eletiva ocorra depois de 1 de janeiro de 2018, exige-se uma proporção de pessoas do sexo sub-representado não inferior a 20%. Esta fasquia elevar-se-á para 33,3% nas assembleias gerais eletivas posteriores a 1 de janeiro de 2020[4].
A CMVM tem, pois, responsabilidades diretas nestas matérias, por via dos deveres de supervisão que lhe cabem relativamente ao cumprimento dos deveres associados as estas medidas regulatórias. Estamos já, assim, a monitorizar o seu cumprimento numa base regular relativamente às entidades sob a nossa supervisão.
No exercício dessa supervisão, tem, pois, sido possível tomar o pulso àqueles que se tornaram responsáveis pelo cumprimento de tais deveres.
Sendo embora cedo para aferir os efeitos destas medidas, é desde já possível traduzir o sentimento dominantes entre os agentes de mercado mais diretamente visados: na generalidade dos casos, os gestores e empresários tendem a perspetivá-las, de forma mais ou menos vocal, como (mais) um custo regulatório, tendencialmente incapaz de aportação de benefícios económicos à atividade empresarial.
É aqui que reside, efetivamente um dos elementos centrais da questão: a lei pode impor a presença “forçada” do género sub-representado, mas tem dificuldades, por essa via e sem outras evoluções paralelas, em tornar essa presença efetivamente desejada ou valorizada no tecido empresarial.
Para que as mudanças ocorram a um ritmo mais acelerado – inclusivamente em benefício das próprias empresas –, não basta demonstrar aos empresários que a promoção da igualdade de género é compatível com a maximização do valor para o acionista: é adicionalmente necessário provar que a promoção da igualdade de género é suscetível de potenciar o valor gerado para o acionista e é fundamental para a viabilidade financeira da empresa a longo prazo.
E é aqui que se situam, em diferentes níveis, os papéis da CMVM enquanto regulador do mercado de capitais e o papel da Academia. No nosso caso, compete-nos, para além do exercício da supervisão sobre a implementação das medidas regulatórias definidas para promover a diversidade nas organizações, partilhar o conhecimento e a perspetiva sobre as evoluções que se observam dos mercados, perspetivando-as com experiência de uma organização que, há mais de duas décadas, é pioneira na promoção das vantagens das boas práticas de governo das empresas. É nesse contexto que, entre outras iniciativas, publicámos recentemente um documento de reflexão com uma consulta alargada a todos os stakeholderssobre as Finanças Sustentáveis, procurando conhecer com maior profundidade a perspetiva dos supervisionados, dos investidores e da sociedade, e na qual a diversidade é também considerada. Dela retiraremos lições e informação para a nossa atividade regulatória e de supervisão.
Mas é importante ir mais longe. Em particular, é relevante demonstrar a evidência dos benefícios da integração dos elementos ESG, ou dos riscos e respetivos impactos da sua não consideração, na atividade empresarial. E é precisamente neste ponto que a investigação académica desempenha um papel porventura mais relevante do que o do legislador, as suas recomendações ou sanções. Refiro-me, por um lado, à necessidade de investigação (sociológica, económica, comportamental) sobre o impacto de certos padrões e políticas sociais na evolução para um nível superior de paridade e diversidade.
Refiro-me também à importância da investigação científica, que cabe à academia conduzir, de forma tão objetiva quanto estes temas o permitam, com vista à demonstração de que, não obstante a existência de um aparente imperativo biológico que impulsiona a preferência dos indivíduos por grupos e equipas mais homogéneos (e menos desafiantes) – ou seja, pelas zonas de conforto – , essa homogeneidade, em contexto empresarial, determina menos perguntas, menos desafio, menor ponderação e discussão de alternativas e, por conseguinte, decisões menos informadas. Demonstrando, assim, que, se a homogeneidade gera segurança e capacidade de execução, a diversidade constitui a principal base de uma sólida gestão de risco e da inovação.
Mas refiro-me ainda à necessidade crítica de criação de capacidade, por via da investigação académica, de quantificação e objetivação do valor que a diversidade gera para as empresas e para as organizações em geral, de modo a criar incentivos objetivos e positivos para o acesso das mulheres aos cargos de topo nas organizações e assegurando que a ausência dessa evidência de criação de valor deixe de constituir uma razão para que tudo permaneça imutável.
[1] Intervenção proferida na conferência “Women on Boards”, organizada pelo ISEG – Lisbon School of Economics & Management, em 20 de março de 2019. Agradece-se a colaboração dos Drs Rui Peres Jorge e Juliano Ferreira na preparação deste texto.
[2] Vide art. 66.º-B, n.º 2 do CódSC