A moratória pública nos contratos de crédito a empresas e as cláusulas de cross default

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O Decreto-Lei n.º 107/2020, de 31 de dezembro, que altera, pela quinta vez, o Decreto-Lei n.º 10-J/2020, de 26 de março, veio permitir que as empresas adiram à moratória pública relativa a operações de crédito até ao próximo dia 31 de março, assim prorrogando, no fundo, as prerrogativas que o diploma de março havia concedido até 30 de setembro 2021 (embora limitando a 9 meses o período em que as empresas podem beneficiar dos efeitos da moratória).

A moratória concretiza-se em três medidas, nos termos do art. 4.º do Decreto-Lei n.º 10-J/2020:

  1. Proibição de revogação, total ou parcial, de linhas de crédito contratadas e empréstimos concedidos, durante o período em que vigorar a medida;
  2. Prorrogação de todos os créditos com pagamento de capital no final dos contratos, vigentes à data de entrada em vigor do Decreto-Lei, incluindo todos os elementos àqueles associados (nomeadamente juros e garantias);
  3. Suspensão do pagamento do capital, das rendas e dos juros em certo tipo de contratos e desde que tenham o vencimento previsto até ao término do período da moratória.

As medidas de prorrogação e suspensão de créditos – ou, mais propriamente os reembolsos do pagamento do capital desses créditos –, impedindo que se considere existir incumprimento contratual ou que se ativem de cláusulas de vencimento antecipado, têm uma relevante relação com as importantes cláusulas de cross default. Estas cláusulas, usualmente apostas em contratos de financiamento, implicam o vencimento da obrigação em caso de incumprimento e fazem incluir no conceito de incumprimento os casos de incumprimento de outra obrigação da sociedade devedora perante o mesmo credor ou outros terceiros credores noutros contratos: nisso consiste o ‘incumprimento cruzado’ (cross default).

Assim e para efeitos contratuais, a moratória não pode ser considerada um event of defaut (se a moratória se aplicar ao contrato), pois, nos termos da Lei, esta obsta ao reconhecimento de qualquer tipo de incumprimento contratual. Deste modo, a adesão ao referido regime legal tem o efeito (indireto) de “congelar” qualquer cross default que se baseie no incumprimento do contrato que beneficia da moratória.

Haverá, no entanto, muitos casos em que o recurso à moratória não é possível (por incumprimento dos pressupostos legais ou esgotamento do período máximo durante o qual se pode beneficiar da mesma – período de até 9 meses) ou, sendo possível, os devedores, por diversas razões, não recorrem a ela.

Apesar de o regime da moratória pública (ainda) poder vir a ser novamente renovado, são vários os alertas para que não poderá manter-se durante muito mais tempo (daí, aliás, o limite temporal máximo fixado no DL n.º 107/2020) e de que surgirá, inevitavelmente, um recrudescimento do denominado “crédito malparado”. Na verdade, tudo dependerá da retoma da atividade económica: para algumas sociedades com maior resiliência e capacidade para hit the ground running, o período da moratória pode ser suficiente para construir uma ‘almofada financeira’ que lhes permita solver os seus compromissos, mas para muitas empresas poderá não ser. No caso destas últimas, mais debilitadas, restará, no contexto do acionamento de cláusulas de cross default, o recurso a alguns institutos gerais – como a força maior, o regime da impossibilidade, a alteração anormal das circunstâncias ou mesmo o abuso de direito – de modo a evitar o verdadeiro “efeito dominó” que o incumprimento, associado àquele tipo de cláusulas, pode gerar.

O atual contexto sublinha, então, a dupla face que as cláusulas de cross default têm:

  1. são, a um tempo, facilitadoras da concessão de crédito, porque estabelecem uma “guarda avançada” do credor, e, por isso, permitem (i) que seja concedido mais crédito ou (ii) que este o seja em condições mais favoráveis para o devedor (por exemplo, prestando menos garantias);
  2. podem desencadear, a outro tempo, a queda da primeira peça do dominó no tabuleiro dos créditos, o que é particularmente perigoso, quando o tabuleiro já “está inclinado” por força da situação económica criada pela pandemia.

Nesta conjuntura, a utilização, pelos bancos credores, dos poderes que estas cláusulas lhes conferem de modo particularmente cuidado é de enorme importância económica e social. Mais, só esse cuidado pode colocar o exercício desses direitos contratuais dos bancos a salvo da censura judicial, quer quanto à admissibilidade das cláusulas, quer quanto ao momento e forma do seu concreto exercício.