A não-resolução do Credit Suisse

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Depois do pequeno susto que soprou do outro lado do atlântico[1], eis que surgiu, do lado do continente europeu, um pré-anúncio de tempestade. O Credit Suisse, envolvido em polémicas desde há vários anos, estava assumidamente em situação de dificuldade financeira e de quebra de confiança.

A situação foi inicialmente contida com o anúncio de que o banco cumpria os requisitos regulatórios e de que, se necessário, o banco central asseguraria liquidez[2], o que deu tempo às autoridades suíças para concluírem, durante o fim-de-semana, uma solução mais robusta.

Trata-se da compra do Credit Suisse pelo UBS, por 3 mil milhões de francos, intermediada e apoiada pelo governo helvético[3]. Estes são os dois maiores bancos suíços e dos maiores e mais sistémicos bancos a nível mundial, classificados como G-SIB (Global Systemically Important Banks). Desta fusão resulta, assim, um mega-banco, com um potencial sistémico ainda maior.

Mais problemáticos são os termos em que esta compra se concretizou.

Por um lado, não foi aplicada uma medida de resolução, a qual teria sido, à primeira vista, possível. Com efeito, nos termos da lei bancária federal, a FINMA (autoridade de supervisão e de resolução) tem ao seu dispor, entre outros, o poder de impor a um banco sob resolução a sua aquisição por outro sujeito jurídico, inclusive com dispensa de consentimento dos acionistas e das regras gerais sobre fusão de sociedades[4].

Diversamente, a medida é apresentada como um negócio privado, mas com apoio estadual. Além da concessão de liquidez pelo banco central, a título de public liquidity backstop[5], foi ainda concedida uma garantia pelo governo federal a potenciais ativos problemáticos agora detidos pelo UBS, no valor de até 9 mil milhões de francos[6]. Ademais, para que os acionistas do Credit Suisse não obstassem ao negócio, foi aprovada legislação para dispensar o seu consentimento[7].

Por outro lado, os instrumentos de fundos próprios adicionais de nível 1 (AT1), que fazem parte do capital regulatório – mais conhecidos como CoCos – foram integralmente reduzidos a zero, enquanto os acionistas, embora penalizados, receberam pela aquisição do seu banco ações no UBS. Ou seja, protegeram-se (parcialmente) os acionistas em detrimento de alguns credores.

Trata-se de uma inversão da hierarquia de créditos que, na resolução, teria de ser observada: só depois de os acionistas – que são detentores de instrumentos de fundos próprios de nível 1 (CET1) – terem absorvido as perdas até ao limite da sua capacidade é que os demais instrumentos de fundos próprios podem ser alvo de redução do valor nominal dos créditos ou da sua conversão em ações. E isto quer esteja em causa uma medida de resolução ou um bail-in fora da resolução, limitado a instrumentos de capital[8].

Os reguladores da União Europeia apressaram-se a declarar que, cumprindo as diretrizes internacionais do Financial Stability Board (FSB), os acionistas de entidades bancárias são os primeiros a absorver as perdas em termos totais, só depois sendo permitido reduzir os instrumentos AT1[9]. Uma clara tentativa de conter o potencial abalo no mercado destes CoCos, com repercussões também para os bancos da zona euro.

Na verdade, a solução encontrada para o banco suíço não deixa de ter elementos do regime resolutivo, nomeadamente a imposição coerciva de um negócio de venda da totalidade da empresa bancária sem o consentimento dos seus sócios – pelo que o negócio privado é, afinal, coercivamente imposto – e a absorção de perdas por parte dos instrumentos de fundos próprios, mas sem esgotar os CET1[10].

Este caso suscita inevitáveis dúvidas sobre a efetiva aplicabilidade, nos diversos ordenamentos jurídicos, da resolução, uma das grandes apostas no pós-crise de 2008 precisamente para acautelar situações futuras de insolvência de instituições de crédito[11]. Que o bail-out, ainda que tido como excecional, não tinha sido totalmente afastado, já se sabia; que as regras de recuperação e resolução sejam suplantadas por soluções políticas ad hoc, não pode deixar de surpreender.

 

[1] Com a resolução de dois bancos de média dimensão, através da constituição de bancos de transição (Sillicon Valley Bank e Signature Bank) e o anúncio da liquidação de um terceiro (Silvergate).

[2] Cfr. “FINMA and the SNB issue statement on market uncertainty”, 15/03/2023.

[3] Cfr. “FINMA approves merger of UBS and Credit Suisse”, 19/03/2023.

[4] Nos termos dos artigos 30(2)(b) e (c) e 31(2) da Loi sur les banques. As alíneas da primeira norma admitem a incorporação do banco com outra entidade, formando um sujeito jurídico novo, e a aquisição ou assunção do controlo do banco por outro sujeito jurídico. A alínea a) prevê a transferência de património para um outro sujeito ou para um banco de transição.

[5] Possibilidade que já estava a ser estudada, mas ainda não consagrada em lei, até ao passado domingo; cfr. “Federal Council wants to introduce new tool to strengthen financial sector stability”, 11/03/2023. Foi a 16 de março que a lei foi aprovada: Ordonnance sur les prêts d’aide supplémentaires sous forme de liquidités et l’octroi par la Confédération de garanties du risque de défaillance pour les prêts d’aide sous forme de liquidités de la Banque nationale suisse à des banques d’importance systémique.

[6] Cfr. “Safeguarding financial market stability: Federal Council welcomes and supports UBS takeover of Credit Suisse”, 19/03/2023.

[7] Alteração, de 19 de março, à Ordonnance de 16 de março, aditando o artigo 10a.

[8] Não temos conhecimento sobre se o clausulado contratual dos instrumentos emitidos pelo Credit Suisse previa uma redução nestes moldes, sem prévio afastamento dos acionistas. De todo o modo, a redução só é efetuada nos termos contratualmente definidos se se tratar de um bail-in puramente contratual, i.e., fora de uma medida de resolução ou do exercício dos poderes de redução e conversão por parte da autoridade de resolução.

[9] “SRB, EBA and ECB Banking Supervision statement on the announcement on 19 March 2023 by Swiss authorities”, 20/03/2023.

[10] Sendo certo que o bail-in de instrumentos de fundos próprios pode ter lugar fora da adoção de uma medida de resolução, tanto no direito europeu, como no direito suíço. É o caso de redução e conversão de créditos em caso de não viabilidade (point of non-viability), cujos requisitos de aplicação incluem a concessão de apoio financeiro extraordinário pelo Estado. Foi com base nesta circunstância que a FINMA justificou a redução dos instrumentos AT1 (artigo 29(2)(a) da Ordonnance sur les fonds propres). O que não parece justificável é a conjugação entre um bail-in aparentemente autónomo e contratual de instrumentos de fundos próprios e uma medida de alienação da atividade apresentada como uma solução privada, mas coerciva, em vez de se assumir plenamente como uma medida de resolução.

[11] Num documento de perguntas e respostas sobre o caso, quanto ao motivo de a regulação já existente não ser suficiente, o governo helvético indica apenas a necessidade de public liquidity backstop, sendo totalmente omisso sobre o não recurso à resolução. Nem sequer a inclui nas opções alternativas de que se poderia ter socorrido, que elenca como sendo a assistência estadual à liquidez, a propriedade pública temporária e o processo de insolvência. Cfr. “FAQ Credit Suisse”, 19/03/2023. Sublinhe-se que, antes da atual crise, a estratégia de resolução assumida pela FINMA em relação ao Credit Suisse, bem como ao UBS, era a recapitalização interna (bail-in) ao nível do grupo bancário; cfr. FINMA, “Banks’ recovery and resolution planning”, disponível em www.finma.ch.