A Diretiva (UE) 2019/878 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2019 (CRD V), procedeu à alteração da Diretiva 2013/36/UE (CRD IV) relativamente a várias matérias, merecendo destaque e reflexão as novidades em matéria remuneratória e, concretamente, a obrigatoriedade de a política de remuneração ser neutra do ponto de vista do género.
Estamos perante um tema ainda em evolução e, portanto, relevante e atual, que permite perceber como certos mecanismos de corporate governance podem ser colocados ao serviço da promoção de fatores ESG; concretamente, a política de remuneração pode configurar-se como apta a promover fatores sociais como a igualdade de género.
Uma das formas de se assegurar um tratamento igual entre homens e mulheres no contexto laboral é, perante as mesmas circunstâncias, garantir-lhes uma política de remuneração idêntica. Pese embora isso possa parecer evidente e indiscutível, a verdade é que ainda continua a ser necessária previsão legislativa com vista a garantir a promoção de políticas remuneratórias neutras em relação ao género.
A promoção de boas práticas laborais também deve funcionar num momento anterior, assegurando-se desde logo a igualdade de oportunidades para o sexo feminino e masculino, designadamente no respeita às perspetivas de carreira e à representação nos órgãos de administração[1]; posteriormente, colocar-se-á então a questão de o seu desempenho ser remunerado de forma idêntica. Em causa estão, assim, questões diferentes ainda que conexas: por um lado, é pré-condição necessária a igualdade no acesso aos cargos e, por outro, a neutralidade no que respeita à política de remuneração desses cargos.
O Anteprojeto de Código da Atividade Bancária (CAB) divulgado pelo Banco de Portugal, além de propor a substituição do RGICSF visa, entre outros propósitos, transpor a CRD V. Este projeto de diploma dedica os arts. 3.º, n.º 1, al. vv)[2] e 172.º, n.º 2[3] à neutralidade de género na política remuneratória. Estas normas resultam então grandemente do enfoque resultante da CRD V a esse propósito, destacando-se o requisito da obrigatoriedade da igualdade da remuneração entre trabalhadores do sexo masculino e feminino, nos casos de trabalho igual ou de valor igual, princípio que já encontrava previsão no art. 157.º do TFUE.
Em face desta alteração de destaque – e das demais em matéria remuneratória –, a EBA lançou uma consulta pública a 29 de outubro (cujo prazo findou no passado dia 29 de janeiro) com vista a rever as guidelines sobre políticas de remuneração sãs ainda vigentes (EBA/GL/2015/22 de 22 de dezembro de 2015[4]), sendo as novas guidelines aplicáveis a partir de 26 de junho de 2021 revogando-se aqueloutras nesta data.
Por ora encontra-se disponível o Consultation Paper on Draft Guidelines on sound remuneration policies under Directive 2013/36/EU[5] – EBA/CP/2020/24 de 29.10.2020 – documento do qual se destacam alguns aspetos:
- As instituições devem seguir uma política de remuneração neutra do ponto de vista do género em relação a todos os colaboradores; isto porque há guidelines que se aplicam a todo o staff e outras que se aplicam a identified staff, como sejam os colaboradores cujas atividades profissionais tenham um impacto significativo no perfil de risco da instituição (arts. 92.º a 95 da CRD IV – identified staff).
- A política de remuneração neutra do ponto de vista do género deve promover uma gestão sã e prudente de riscos e deverá estar alinhada com uma perspetiva de longo prazo da instituição.
- A garantia de idênticas remunerações coloca-se num plano a posteriori, dado que em momento anterior é necessário que se assegurem oportunidades iguais, funcionado tal como uma pré-condição para que se coloque esta outra discussão da neutralidade das políticas remuneratórias.
- A igualdade remuneratória refere-se a todos os componentes remuneratórios, não se resumindo ao tradicionalmente identificado como “salário base”.
- A política de remuneração e restantes condições laborais devem ser neutras em relação ao género; nessas condições incluem-se as políticas de recrutamento, os planos de carreira e de sucessão, acesso a formação e a vagas internas.
- A política de remuneração neutra não invalida que se considere, entre outros fatores, o grau de senioridade, experiência profissional, habilitações académicas ou nível de remuneração praticado numa determinada localização geográfica.
- Com vista a avaliar a implementação prática da política de remuneração neutra, as instituições devem manter um registo do qual conste, designadamente, os cargos que se equivalem ou que determinam a prática de idênticos valores/hora, considerando nomeadamente a responsabilidade que requerem e outros aspetos adicionais.
- No que respeita à análise da implementação da política de remuneração neutra, esta deve ser avaliada periodicamente e bem assim os rácios entre a remuneração média dos quadros masculinos e femininos e possíveis discrepâncias devem ficar documentadas não podendo a sua justificação fundar-se no género.
Dois anos após a publicação das guidelines, a EBA elaborará um relatório sobre a aplicação das políticas de remuneração neutras, baseando-se nas informações recolhidas pelas autoridades competentes.
De acordo com a última informação da Eurostat a que tivemos acesso e que se refere ao ano de 2018[6], encontramos algumas curiosidades relativamente ao panorama português quanto ao pay gap:
- o pay gap em Portugal era de 16.2% – superior, portanto, ao da média da UE que era de 14.8%;
- se se destrinçar entre empregos part-time full-time, percebe-se que as disparidades salariais entre homens e mulheres em part-time é de 24% e em regime full-time de aproximadamente 15%;
- o pay gap é inferior relativamente a trabalhadores jovens e tende a aumentar com a idade – 12,3% (<25 anos), 9,8% (25-34 anos), 14,5% (35-44 anos), 18% (45-54 anos), 23,3% (55-64 anos) e 39,5% (>65 anos);
- em Portugal o setor de atividade em que se regista uma maior discrepância salarial é na indústria (o que diverge da generalidade dos países da UE, nos quais é a atividade financeira e seguradora que ocupa tal posição); e
- o pay gap é superior no setor privado em comparação com o público (22,4% vs. 13,3%).
A Comissão Europeia já avançou justificações para as aludidas discrepâncias remuneratórias que vêm marcando os vários países da UE, a saber[7]:
- os cargos de topo são frequentemente ocupados por homens, o que determina para estes um incremento remuneratório e bem assim promoções mais frequentes;
- as mulheres assumem diversas tarefas não remuneradas, o que contribuiu para reduzir o período em que poderiam estar a realizar aquelas que o são;
- ao passarem mais períodos fora do mercado de trabalho – p.e., em gozo de licenças de maternidade ou de apoio à família – essa circunstância contribuiu não só para o decréscimo remuneratório como também para a não progressão, o que também impactará nas verbas a auferir no futuro (por exemplo, nas pensões);
- discriminação salarial (por exemplo, através de remuneração/hora mais baixa) e
- subrepresentação e sobrerepresentação das mulheres em certas profissões.
Conforme afirma a Comissão Europeia: “it’s time to close the gap!”[8]. E é-o por vários motivos, desde logo porque o princípio da igualdade salarial permite motivar, reconhecer e recompensar o valor e talento do colaborador, independentemente do género; além de que faz parte da elementar justiça social que emana do próprio princípio da dignidade do ser humano. Ademais, do ponto de vista da economia, funcionando o pay gap como um indicador das desigualdades remuneratórias de um país ou sociedade, pode ser uma ferramenta relevante para avaliar uma situação de (des)investimento, particularmente numa época em que o mercado e investidores são cada vez mais exigentes relativamente à obtenção de informação não financeira que procuram.
A respeito do relevo da transmissão de informação não financeira conjugada com o tema em apreço, deixamos duas breves notas:
- O relevo do Regulamento (UE) 2019/2088 do Parlamento Europeu e do Conselho de 27 de novembro de 2019 relativo à divulgação de informações relacionadas com a sustentabilidade no setor dos serviços financeiros (SFDR), particularmente o art. 5.º que prevê (a) a obrigatoriedade de os intervenientes no mercado financeiro e os consultores financeiros incluírem nas suas políticas de remuneração informações sobre a forma como estas integram os riscos em matéria de sustentabilidade e (b) publicar essas informações na Web;
- Segundo uma das propostas veiculadas no Joint Consultation Paper – ESG disclosures, o JC 2020 16, de 23 de abril de 2020[9], as informações relativas aos vários tópicos constantes do seu Anexo devem ser divulgadas anualmente, do qual devemos destacar, justamente a respeito desta reflexão, o gender pay gap, enquanto adverse sustainability indicator; entretanto convertido em relatório final e definitivo de 2 de fevereiro de 2021 (JC 2021 03)[10]
Em suma, a adoção destas boas práticas sociais/laborais e remuneratórias implica a internalização de fatores sociais e de governação por parte de uma sociedade e essas decisões seguramente impactarão positivamente tanto na reputação da sociedade, como na criação de valor social; uma vez mais, a remuneração pode ser percecionada como um mecanismo que contribuiu fortemente para garantir a sustentabilidade.
[1] A este respeito regula a Lei n.º 62/2017, de 1 de agosto, estabelecendo o regime da representação equilibrada entre mulheres e homens nos órgãos de administração e de fiscalização das entidades do setor público empresarial e das empresas cotadas em bolsa; no âmbito recomendatório são de assinalar as recomendações I.2.1. e V.3.4. do Código de Governo das Sociedades do IPCG de 2018 (revisto em 2020), que atentam especialmente no requisito diversidade, incluindo a de género.
[2] Nos termos do preceito: “«Política de remuneração neutra do ponto de vista do género» [é] uma política de remuneração baseada na igualdade de remuneração entre trabalhadores masculinos e femininos por trabalho igual ou de valor igual”.
[3] De acordo com esta norma, “[a]s políticas e práticas remuneratórias a que se refere o número anterior são neutras do ponto de vista do género”.
[4] Vd. EBA-GL-2015-22 Final report on Guidelines on Sound Remuneration Policies.pdf (europa.eu).
[5] Vd. Guidelines on sound remuneration policies (second revision) | European Banking Authority (europa.eu).
[6] Vd. Gender pay gap statistics – Statistics Explained (europa.eu)
[7] Vd. Equal Pay Factsheets 2018 (Portugal), disponível em https://ec.europa.eu/info/sites/info/files/aid_development_cooperation_fundamental_rights/equalpayday_factsheets_2018_country_files_portugal_en.pdf.
Ver, também, Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões – Uma União de Igualdade: Estratégia para a Igualdade de Género 2020-2025 (COM/2020/152 final), disponível em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX:52020DC0152; A decomposition of the unadjusted gender pay gap using Structure of Earnings Survey data, 2018, do Eurostat, disponível em https://ec.europa.eu/eurostat/documents/3888793/8979317/KS-TC-18-003-EN-N.pdf/3a6c9295-5e66-4b79-b009-ea1604770676?t=1528790952000 e ainda Ana Rute Cardoso, Pedro Portugal, Paulo Guimarães, Pedro S. Raposo, «The sources of the gender wage gap», disponível em https://www.bportugal.pt/sites/default/files/anexos/papers/re201606_e.pdf.
[8] Vd. Factsheet on the gender pay gap, da Comissão Europeia, disponível em 2020_factsheet_on_the_gender_pay_gap.pdf (europa.eu).
[9] Disponível em jc_2020_16_-_joint_consultation_paper_on_esg_disclosures.pdf (europa.eu).
[10] Disponível em jc_2021_03_joint_esas_final_report_on_rts_under_sfdr.pdf (europa.eu) .