A remuneração dos Administradores em tempos de covid-19 [1]
A crise financeira que eclodiu em 2007 revelou estruturas de remuneração cada vez mais complexas, as quais se baseavam, frequentemente, no desempenho a curto prazo, o que, entre outros, se demonstrou suscetível de conduzir a uma remuneração excessiva dos administradores, não justificada pelo desempenho e que tem sido apontado como uma das possíveis causas da referida crise financeira [2] [3].
Desde então foram promovidas diversas alterações legislativas com o objetivo de (i) assegurar a transparência das práticas de remuneração, (ii) o controlo dos acionistas sobre a política de remuneração e (iii) a remuneração individual, sustendo-se, para o efeito, (a) na divulgação das remunerações, (b) na introdução de um voto obrigatório ou consultivo relativamente à declaração sobre as remunerações, (c) na aprovação pelos acionistas dos regimes de remuneração com base em ações, e (d) na supervisão não executiva eficaz e independente e o desempenho por parte do comité das remunerações de um papel pelo menos consultivo sobre as práticas de remuneração.
Tudo no intuito de promover a sustentabilidade a longo prazo das sociedades e assegurar que a remuneração dos administradores se possa basear no desempenho, bem como regular em maior medida o processo tendente a determinar a remuneração dos administradores e, bem assim, o controlo desse mesmo processo[4].
Transparência reforçada. Porém, constituindo a divulgação um mecanismo de transparência que impele a administração a fundamentar as opções realizadas ao nível da remuneração, pode potenciar reações políticas ou populistas, o que, num meio pequeno como o verificado no caso português, se tem prestado a abordagens sensionalistas, as quais podem ser exacerbadas no âmbito de circunstâncias pandémicas, risco este que é agravado nos setores sujeitos aos maiores impactos da situação pandémica.
Pelo que, importa que as entidades possam reforçar os seus mecanismos de comunicação, fazendo-o de forma especialmente cuidada, clara e fundamentada, explicitando o benefício estratégico, incluindo em termos de sustentabilidade e de geração de valor para todos os stakeholders, que pode representar investir em capacidade de gestão e em gestores capacitados.
Impactos na remuneração. A emergência da pandemia apanhou muitas entidades em processo de definição de remuneração dos seus administradores, ou que o haviam concluído recentemente.
Contudo, mesmo para aquelas em que o processo remuneratório já se encontrava concluído e em execução aquando do surgimento da Covid-19, a severidade dos seus efeitos, socais e económicos, poderão implicar, num número significativo de casos, um efeito muito adverso nas remunerações dos administradores, em especial nos casos em que a mesma possa estar indexada ou ser constituída por ações, cujo valor pode ser negativamente impactado pelas condições económicas adversas, ou em que o desempenho da sociedade assumo, no computo total da remuneração, uma proporção significativa.
Assim, para as entidades cujo processo de definição da remuneração se encontra em definição, especialmente ao nível de estabelecimento de métricas e objetivos, importa avaliar o benefício de protelar a conclusão do processo até que se atinja uma maior estabilização e clarificação dos impactos da presente situação.
Neste contexto, poderá ser prudente que os contratos relevantes possam conter cláusulas como as designadas “wait-and-see”, salvaguardar a possibilidade de rever as métricas e objetivos num momento pós-pandémico, bem como avaliar a possibilidade de o fazer nos demais casos.
A redução da remuneração. A redução abrupta da atividade económica e as suas consequências na estrutura de proveitos das entidades obrigou a uma pronta (re)avaliação da sua estrutura de custos, incluindo da remuneração dos colaboradores em geral e, também, dos administradores em particular[5], quer nas componentes fixas quer nas variáveis.
Contudo, importa avaliar o impacto que tal revisão poderá ter no quadro contratual e na estratégia da empresa. A redução pode, por si só, não constituir uma medida de bom governo ou de boa gestão, cumprindo reavaliar ere definir métricas e objetivos em face do novo contexto, social e económico, que a pandemia irá suscitar.
Não obstante, caso se concretize uma redução da administração uma questão dilemática poderá ser magnitude da mesma. Também aqui importa que a mesma seja tomada de forma transparente, fundamentada de forma especialmente cuidada, por forma a que os stakeholders possam conhecer e sindicar os seus pressupostos.
Esta é, pois, uma matéria relevante, mas especialmente sensível na conjuntura atual, que não deve ser descurada, em especial no âmbito da transparência a que se encontra sujeita.
Também por isso a temática da remuneração foi incluída na obra promovida pelo GovernanceLab “Administração e Governação das Sociedades”, sendo ainda objeto do Webinar no dia 21 de maio às 15h00 de Lisboa, através do ZOOM, também promovido pelo GovernanceLab sobre “Corporate Governance, Deveres dos Administradores e Gestão de Crises”.
[1] Tiago dos Santos Matias, Diretor do Departamento de Supervisão Contínua, na CMVM. Advogado. As opiniões expedidas no presente texto são pessoais e apenas vinculam o seu Autor. No presente estudo as citações em língua inglesa serão realizadas mantendo o texto original para benefício da tradução pelo leitor.
[2] Guido Ferrarini (2019), “Compensation in Financial Institutions – Systemic Risk, Regulation, and Proportionality”, Governance of Financial Institutions, Oxford, p. 253.
[3] Com interesse para este ponto veja-se Jorge André Carita Simão (2010), A remuneração dos administradores das sociedades e as suas implicações no contexto da crise financeira mundial, Revista de Direito das Sociedades, Ano II, p.785-820, e Paulo Câmara (2012),O governo societário dos bancos – em particular, as novas regras e recomendações sobre remuneração na banca, Revista de Direito das Sociedades, Ano IV, p.9-46.
[4] Com interesse para este ponto veja-se Niamh Moloney (2012), The EU and Executive Pay: Managing Harmonisation Risks, Research Handbook on Executive Pay, 466, editado por Randall Thomas and Jennifer Hills.
[5] Facto que tem merecido uma ampla cobertura noticiosa, a título de exemplo veja-se, aqui e aqui.