Algumas Notas sobre a Proposta de Regulamento Europeu sobre Mercados de Criptoativos

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  1. A Comissão Europeia publicou, no dia 24 de setembro de 2020, uma proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho relativo aos mercados de criptoativos (já conhecida pelo seu acrónimo em inglês, MiCA, de markets in crypto-assets)[1].
  2. Esta proposta, inserida no Digital Finance Package e mandatada pelo Plano de Ação da Comissão sobre FinTech, vem, três anos após a bolha das initial coin offerings (“ICOs) e a proliferação de tokens de várias configurações diferentes, trazer alguma segurança jurídica a estas operações cuja intensidade e frequência entretanto diminuíram.
  3. A proposta de Regulamento tem uma lista de objetivos bastante ambiciosa, tais como (i) tornar o setor europeu de emissão e prestação de serviços em criptoativos mais competitivo; (ii) fomentar o mercado dos criptoativos, ao permitir que os consumidores se sintam seguros no acesso a produtos inovadores; (iii) mitigar riscos e perigos comummente associados aos criptoativos; (iv) dar mais segurança jurídica a todos os operadores do mercado; e (v) assegurar a estabilidade financeira e a integridade dos mercados europeus de criptoativos.
  4. Tais objetivos são assegurados pela criação de um regime uniforme, diretamente aplicável em todos os Estados-Membros da União Europeia (falamos de um Regulamento europeu que, ao contrário das Diretivas, não carece de transposição pelos Estados-Membros).
  5. Sem prejuízo de se poder discutir a tempestividade ou a pertinência do regime proposto, ele apresenta-se como a potencial trave-mestra na construção de um regime europeu de criptoativos coerente.
  6. Neste breve texto, tentar-se-á perceber o que revela o âmbito objetivo desta proposta de Regulamento e quais as suas principais novidades.

 

A Proposta de Regulamento MiCA e a Arrumação Sistemática dos Criptoativos

  1. A proposta de Regulamento vem definir um criptoativo como uma “representação digital de valor ou de direitos que pode ser transferida e guardada eletronicamente através da utilização de distributed ledger-technology ou tecnologia semelhante.”
  2. Esta definição ampla põe a ênfase em duas características capitais dos criptoativos: (i) são representações digitais de valor, sem valor intrínseco; e (ii) têm subjacente uma tecnologia de registo descentralizado (distributed ledger technology ou semelhante, sendo o exemplo mais conhecido a blockchain, doravante “DLT”) que define as circunstâncias da criação e transmissão do respetivo criptoativo, sem necessidade de autoridade central e em que o controlo da criação, transmissão e aferição da titularidade das unidades de criptoativos é feita exclusivamente por meios criptográficos[2].
  3. A proposta de Regulamento identifica três categorias de criptoativos que se encontram dentro do seu âmbito objetivo de aplicação[3]:
    1. Token de utilização (utility token), definido como o criptoativo cujo objetivo é dar acesso digital a um bem ou serviço, disponível em DLT e apenas aceite pelo emitente daquele token;
    2. Token com referência em ativos (asset-referenced token) – um tipo de criptoativo que se propõe a manter um valor estável por o cálculo desse valor ter por referência moedas com curso legal, mercadorias, outros criptoativos ou uma combinação desses todos; e
    3. Token de e-money (e-money token) – um tipo de criptoativo cujo objetivo é ser utilizado como meio de troca e que se propõe a manter um valor estável por referência ao valor de uma moeda com curso legal.
  4. Outras categorias de criptoativos ficam de fora do âmbito de aplicação do Regulamento proposto[4], a saber:
    1. Criptoativos já definidos como instrumentos financeiros nos termos da DMIF II[5], o que corresponde essencialmente à definição clássica de token de investimento (investment ou equity token), cuja recondução à categoria de valor mobiliário ou de instrumento financeiro é geralmente aceite; e
    2. Criptoativos já definidos como dinheiro eletrónico nos termos da Diretiva do Dinheiro Eletrónico.
  5. Podemos então identificar duas escolhas da Comissão de importância capital na arrumação sistemática e conceptual dos criptoativos no direito da União Europeia.
  6. Em primeiro lugar, a Comissão definiu criptoativo da forma mais ampla possível, procurando abranger expressões e configurações de criptoativos que ainda não existam ou que ainda não tenham visibilidade.
  7. Em segundo lugar, ao referir expressamente que os criptoativos que se qualifiquem como instrumentos financeiros nos termos da DMIF II não entram no âmbito objetivo de aplicação do regime proposto, a Comissão está a confirmar a colocação firme dos investment tokens no seio do direito financeiro e dos valores mobiliários.
  8. Tal colocação é orientada por um princípio de neutralidade de tecnologia, i.e., não é o facto de a tecnologia subjacente a um token de investimento ser diferente da de um instrumento financeiro tradicional que justificará um regime distinto[6].
  9. Adicionalmente, a Comissão propôs, no mesmo dia da proposta de Regulamento, uma alteração da definição de instrumentos financeiros na DMIF II para incluir expressamente a possibilidade de os ativos relevantes poderem ter tecnologia DLT subjacente, dissipando assim quaisquer dúvidas sobre a classificação de muitos tokens como valores mobiliários.
  10. Assim, o novo regime acabou por se circunscrever aos utility tokens, que sempre foram de uma mais difícil recondução jurídica a categorias e regimes já existentes e, com a previsão expressa dos asset-referenced tokens e dos e-money tokens, às chamadas stablecoins, que têm sido objeto de grande atenção mediática.

 

O Regime Proposto

  1. Visto o âmbito de aplicação objetivo da proposta de Regulamento e a importância da exclusão e da inclusão de alguns tipos de criptoativos nesse âmbito, vejamos sumariamente que aspetos do regime dos criptoativos relevantes são abordados pela proposta.
  2. Pode operar-se uma tripartição da proposta de Regulamento em três regimes: (i) regime de emissão de criptoativos[7], incluindo requisitos especiais aplicáveis aos emitentes de algumas stablecoins[8]; (ii) regime aplicável aos prestadores de serviços de criptoativos; e (iii) normas de proteção de consumidores e regime especial de prevenção de abuso de mercado.
  3. Quanto ao primeiro ponto, a proposta de diploma prevê um conjunto de requisitos para a oferta dos criptoativos dentro do seu âmbito ao público, tais como a personalidade coletiva do emitente e a elaboração e publicação de um white paper, sujeito a requisitos de forma e conteúdo[9].
  4. A proposta de Regulamento diz expressamente que o white paper não é um prospeto (sem prejuízo da óbvia comparabilidade funcional) e, mais importante, não consagra um dever de aprovação do white paper pela autoridade competente, mas tão-só um dever de notificação pelo emitente 20 dias antes da publicação no seu site. Algumas ofertas estão isentas do dever de publicação de white paper.
  5. Outra das preocupações da proposta de Regulamento prende-se com as chamadas stablecoins – criptoativos que usam um ativo de reserva como referência, que ganharam popularidade recentemente, tais como a Libra do Facebook ou a Tether – estabelecendo requisitos de emissão e de supervisão mais apertados para os seus emitentes.
  6. Conforme já referido, a proposta de Regulamento não usa a categoria stablecoin mas asset-referenced tokens e e e-money tokens, tentando abranger a realidade das stablecoins com estas duas categorias distintas.
  7. Ora, segundo a proposta de Regulamento se a Autoridade Bancária Europeia considerar algum desses tokens como “significativos”, pode impor requisitos adicionais aos emitentes, nomeadamente requisitos de fundos próprios, regras especiais de governance, deveres acrescidos de prevenção de conflitos de interesses e regras aplicáveis aos ativos de reserva que servem de base à stablecoin relevante[10].
  8. As regras aplicáveis aos e-money tokens são ainda mais exigentes, devendo os emitentes dispor de autorização de instituição de crédito ou de instituição de moeda eletrónica, com deveres de divulgação de informação adicionais.
  9. Finalmente, a proposta de Regulamento prevê um regime aplicável a prestadores de serviços de criptoativos (designados como CASP, ou cryptoassets service providers em inglês)[11].
  10. Quem queira prestar serviços de criptoativos, que incluem, entre outros, depósito de criptoativos por conta de outrem, gestão de plataformas de negociação de criptoativos, câmbio de criptoativos por moeda com curso legal ou por outros criptoativos ou execução, colocação, receção e transmissão de ordens por conta de outrem sobre criptoativos, deve ser autorizado para tal pela autoridade competente designada pelo Estado-Membro.
  11. Estes prestadores de serviços devem cumprir uma série de requisitos formais, prudenciais e organizacionais paralelos aos que os intermediários financeiros já estão sujeitos.
  12. A proposta de Regulamento contém ainda normas de prevenção de abuso de mercado aplicáveis aos criptoativos[12].
  13. É ainda importante referir, ainda que sumariamente, que a proposta de Regulamento foi acompanhada de uma outra proposta de Regulamento que pretende criar condições para a operação de sistemas de negociação multilateral e sistemas de compensação usando tecnologia de registo descentralizado (decentralised ledger technology, sendo a tecnologia blockchain a mais conhecida) (em conjunto, “infraestruturas de mercado DLT”) por operadores de mercado autorizados para tal[13].
  14. Para esse efeito, sujeita-se os sistemas de negociação multilateral e os sistemas de compensação DLT ao regime geral já aplicável às mesmas infraestruturas cujos ativos em negociação não têm subjacente tecnologia DLT e cria-se um conjunto regras específicas aplicáveis a essas plataformas e que não serão aqui analisadas.

Breve Reflexão Preliminar

  1. Por muitas arestas que ainda possam estar por limar, e sem prejuízo do tempo que a implementação deste regime ainda pode tomar, a criação de um regime europeu uniforme de definição, emissão e prestação de serviços de certos criptoativos, bem como a arrumação definitiva de outros criptoativos dentro de regimes já existentes, é um passo importante no caminho para a construção de um mercado europeu de criptoativos.
  2. A exclusão clara de muitos investment tokens do âmbito objetivo deste regime e, consequentemente, a confirmação da sua inclusão no âmbito objetivo da DMIF II como instrumentos financeiros e, na maioria dos casos, como valores mobiliários nos termos dos direitos nacionais (muitos certamente serão valores mobiliários no direito português), é uma notícia importante, ao confirmar o que anos de discussão e pensamento de autoridades, práticos e teóricos já antecipavam.
  3. No entanto, muitas dificuldades ainda se avizinham nas várias iterações que esta proposta terá ao longo do processo político que poderá levar à sua aprovação. Fará sentido excluir alguns investment tokens do regime mais simples da proposta de Regulamento, sujeitando-os às onerosas regras aplicáveis às ofertas públicas de valores mobiliários e à obrigação de publicar prospeto? Que regime aplicar aos chamados tokens híbridos, que apresentem, por exemplo, características de investment tokens e de utility tokens?
  4. Finalmente, desde o seu grande boom entre 2016 e 2017, que os ICOs (cujos modelos típicos terão servido de inspiração para a criação do regime de emissão da proposta de Regulamento) perderam a dinâmica e a dimensão que outrora tiveram – se isso é um sintoma de que são uma forma de financiamento a caminho da obsolescência ou de que o mercado está mais consolidado, só o tempo nos dirá.
  5. Adicionalmente, chamar-se-á a atenção para o facto de a Comissão prever uma entrada em vigor do Regulamento, tudo correndo bem no processo político, em 2024. Nestes mercados muita coisa mudará em quatro anos, podendo pôr-se sempre a dúvida – apesar das suas boas intenções nesse sentido, estará o Regulamento preparado para lidar com novos fenómenos que surjam entretanto?

[1] Proposal for a Regulation of the European Parliament and of the Council on Markets in Crypto-assets, and amending Directive (EU) 2019/1937, COM/2020/593 final, disponível em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=CELEX%3A52020PC0593 (versão em inglês – não foi publicada versão em português).

[2] O Autor, em estudo escrito em abril de 2018, ainda se referindo a criptoativos como “criptomoedas”, havia identificado estas duas características, entre outras adicionais. Vide, para mais desenvolvimentos e referências para definições de outros autores, António Garcia Rolo, “As criptomoedas como meio de financiamento e a qualificação dos tokens de investimento emitidos em ofertas públicas de moeda (ICO) como valores mobiliários”, em Fintech II – Novos Estudos de Tecnologia Financeira, Almedina, Coimbra, 2019, 249-298, 251-255

[3] Artigo 3.º, n.º 1, da Proposta de Regulamento.

[4] Artigo 2.º, n.º 2, da Proposta de Regulamento.

[5] Diretiva 2014/65/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de maio de 2014 , relativa aos mercados de instrumentos financeiros e que altera a Diretiva 2002/92/CE e a Diretiva 2011/61/UE

[6] Cfr., a propósito, o Considerando 6 da proposta de Regulamento, onde se diz que a legislação europeia não deve favorecer uma dada tecnologia e que instrumentos financeiros conforme definidos na DMIF II devem continuar regulados pelo regime aplicável aos instrumentos financeiros, “independentemente da tecnologia usada para a sua emissão e transferência”.

[7] Artigos 4.º a 14.º da Proposta de Regulamento.

[8] Artigos 15.º a 52.º da Proposta de Regulamento.

[9] Artigos 5.º a 12.º da Proposta de Regulamento.

[10] Artigos 39.º a 42.º e 50.º a 52.º da Proposta de Regulamento.

[11] Artigos 53.º a 75.º da Proposta de Regulamento.

[12] Artigos 76.º a 80.º Proposta de Regulamento.

[13] Proposal for a Regulation of the European Parliament and of the Council on a pilot regime for market infrastructures based on distributed ledger technology, COM(2020) 594 final, disponível em https://ec.europa.eu/transparency/regdoc/rep/1/2020/EN/COM-2020-594-F1-EN-MAIN-PART-1.PDF (versão em inglês – não foi publicada versão em português).