Os recentes conflitos entre a companhia e os acionistas não controladores, principalmente em companhias que não possuem controlador definido, revelam uma nova faceta do mercado de capitais brasileiro. Isso se deve não só à pulverização da base acionária, mas também ao ativismo dos fundos de investimento, titulares de ações das companhias envolvidas nessas operações. Os gestores dos fundos, cientes de seus deveres fiduciários, passaram a atuar diretamente na defesa dos interesses dos cotistas dos fundos perante a companhia, adotando uma postura mais ativa.
Há, nesse processo, um conflito aparente entre os interesses dos administradores da companhia-alvo e os interesses dos acionistas. Aqueles, em certos casos, possuem o interesse em permanecer no cargo após a concretização do negócio, extraindo benefícios, diretos ou indiretos. Por outro lado, os acionistas buscam maximizar o valor das ações, exigindo que a administração da companhia busque o melhor preço.
No Brasil, a administração da companhia tem o dever de agir no interesse da companhia, que, ao fim e ao cabo, resulta no atendimento do interesse coletivo dos acionistas. Em um processo de M&A, o dever fiduciário da administração da companhia aberta com capital disperso é o de buscar o melhor preço por ação para a comunhão acionária, desde que isso não prejudique a companhia. Ou seja, a administração deve fazer um juízo de adequação e eficiência da operação, além de buscar maximizar o preço a ser pago pela ação. Normalmente, quando há mais de um interessado na transação, há um leilão não organizado para aquisição do controle. É o que se verificou no caso da Linx, com as ofertas de Stone e Totvs.
Nessa operação, o que mais chamou a atenção do mercado e dos acionistas foi a cláusula de penalidade do contrato de compra e venda de ações, que imputava à Linx multa em caso de cancelamento da transação, seja pela administração, seja pelos acionistas (caso não aprovassem a operação em assembleia). A B3 foi chamada a se manifestar sobre a validade da referida cláusula. Em notificação à Linx, a B3, por meio das superintendências de listagem e de regulação, concluiu que a multa era incompatível com as regras do segmento de listagem da bolsa de valores (no caso, o Regulamento do Novo Mercado).
Houve, também, dúvidas sobre os poderes ou atribuições do conselho de administração para aprovar a transação, cujo contrato previa multas elevadas em caso de não concretização do negócio, principalmente quando tais multas ultrapassavam os limites estabelecidos no estatuto social. Será que o conselho teria competência para aprovar o contrato? Ou deveria, antes de autorizar a assinatura pela diretoria, submetê-lo à assembleia? Ou deveria constar uma condição precedente (suspensiva e resolutiva), em que o contrato somente passaria a vigorar se houvesse a aprovação dos acionistas em assembleia? Com isso, a multa não seria aplicável. Somente haveria multa se a assembleia aprovasse a transação e, posteriormente, voltasse atrás. São questões novas para o nosso mercado de capitais e que precisam ser amplamente debatidas.
Nesse debate, é imperioso examinar as soluções dadas pelo direito norte-americano, que enfrentou essa temática, muito antes, em diversos casos julgados pelas Cortes estaduais, principalmente a de Delaware. O primeiro deles – um dos mais conhecidos – é o caso Revlon Inc. v. MacAndrews & Forbes Holdings, Inc. (Delaware, 1986), no qual se estabeleceu a seguinte regra: quando uma aquisição hostil é inevitável, os administradores da companhia têm o dever fiduciário de buscar o melhor preço para os acionistas. No caso, a Pantry Pride, Inc. e Forstman disputaram longamente a aquisição da Revlon, com diversas artimanhas jurídicas e várias ofertas de preço, elevando a oferta inicial de US$ 40-42, por ação, para US$ 57,25, além de sujeitá-la a diversas condições.
Em outro caso, conhecido como Paramount Communications, Inc. v. Time, Inc. (Delaware, 1989), a Corte de Delaware concluiu que os membros do conselho de administração da companhia-alvo não tinham o dever fiduciário de favorecer o interesse de maximização do lucro do acionista de curto prazo em detrimento de um plano de longo prazo da companhia, que estava em andamento, desde que houvesse razões justificáveis para manter o referido plano. A Time pretendia se associar ou adquirir a Warner, Inc. Para evitar que o mercado interpretasse a operação como venda da Time, o conselho de administração aprovou diversas medidas defensivas, como por exemplo, a cláusula no-shop. A Paramount, por sua vez, fez uma oferta para adquirir a Time e evitar a associação desta com a Warner. A administração da Time tinha receio que a aquisição da companhia, pela Paramount, poderia prejudicar a integridade jornalística da companhia. A Paramount alegou que o conselho de administração da companhia deveria buscar o melhor preço para o acionista (teste do caso Revlon) e deveria agir de maneira diligente (teste do caso Unocal).
A diferença do caso Revlon é que a Time não estava à procura de um comprador, ao contrário, era ela que estava em busca de adquirir ou se associar com a Time. No caso Revlon, a companhia recebeu uma oferta hostil de compra e, portanto, a administração deveria buscar o melhor preço. No caso Paramount, a Time não havia recebido uma oferta hostil quando iniciou as negociações com a Time; logo o precedente da Revlon não se aplicou e a Corte entendeu que os administradores não violaram seus deveres fiduciários ao aprovarem uma operação que tinha suporte razoável no plano de longo prazo da companhia.
Esses casos demonstram a importância do conselho de administração em operações de M&A. Ao examinar as transações nos Estados Unidos, as Cortes estaduais presumem, em primeiro lugar, que os administradores observaram o dever de diligência (as decisões foram tomadas com base em informações necessárias e suficientes, com o auxílio de assessores especializados, se necessário), agiram de boa-fé e atuaram no melhor interesse da companhia. É o reconhecimento da chamada business judgment rule.
Cabe à autora da ação, por sua vez, demonstrar que os administradores violaram esses deveres fiduciários, fazendo com que o tribunal passe para a etapa de escrutínio da decisão do conselho de administração, verificando o processo decisório do conselho, as informações que basearam a decisão e a razoabilidade das decisões. Por exemplo, em uma operação de mudança de controle, o conselho de administração terá o dever de buscar o maior preço por ação para o acionista. No entanto, se o conselho demonstrar que há razões substanciais e justificáveis para acreditar que a transação coloca em risco a companhia, e consequentemente os interesses dos acionistas, ele pode adotar medidas defensivas que sejam também razoáveis e adequadas para afastar a ameaça de concretização da transação.
Retornando ao caso Linx, os acionistas, inconformados, acionaram a Comissão de Valores Mobiliários com os seguintes pedidos: (a) adiamento de assembleia geral extraordinária da Linx, a pedido do Fundo Aberdeen, sob a alegação de que eventos significativos relacionados às propostas da Stone e da Totvs (proposta concorrente), entre elas a alteração das condições da oferta da Stone, ocorreram após a publicação do edital de convocação; (b)interrupção do curso do prazo de convocação de assembleia geral extraordinária da Linx, formulado pelos acionistas Absolute Gestão de Investimentos, Alpha Key Capital Management Investimentos, BNP Paribas Asset Management e RPS Capital Administradora de Recursos, tendo como fundamento a necessidade de a CVM examinar as matérias da ordem do dia e reconhecer a ilegalidade das mesmas, sob a alegação de que: (i) os acionistas fundadores teriam recebido tratamento diferenciado em relação aos demais acionistas, por meio de um prêmio de controle disfarçado, resultante de contratos de indenização por não concorrência e de proposta de contratação de um dos acionistas para ocupar cargo na companhia ofertante; (ii) a operação seria ilegal, contrariando o regime jurídico da incorporação de ações previsto no art. 252 da LSA, eis que a proposta contemplava a emissão de ações preferenciais resgatáveis, o que caracterizaria uma alienação de controle da Linx por via transversa, acarretando também tratamento diferenciado entre os acionistas da mesma classe; e (iii) a multa contratual seria abusiva, desincentivando os acionistas a aprovar, eventualmente, a proposta concorrente da Totvs.
Em ambos os casos, o Colegiado da CVM indeferiu os pedidos de adiamento e de interrupção do curso do prazo de convocação da assembleia da Linx. Com base em manifestação da Superintendência de Relações com Empresas (SEP), o Colegiado confirmou o entendimento de que: (a) as alterações nas circunstâncias das propostas apresentadas após a publicação do edital de convocação não seriam suficientes para justificar o adiamento da assembleia, tendo em vista serem objetivas e de fácil assimilação; (b) os acionistas fundadores, em uma análise perfunctória, não poderiam ser considerados controladores e os valores dos contratos de não competição não teriam correlação com as participações sociais; (c) não haveria violação “do regramento aplicável ao negócio jurídico de incorporação de ações” em razão da atribuição de ações preferenciais resgatáveis aos acionistas fundadores da Linx, baseando-se em decisão anterior do Colegiado, proferida no caso Fibria Celulose e Suzano Papel e Celulose, cuja estrutura era semelhante ao caso da Linx.
Interessante destacar, ainda, que o Colegiado confirmou o entendimento da SEP de que a análise de eventual abuso do poder de controle pelos acionistas fundadores, a alegada fraude ao negócio jurídico da incorporação de ações, a suposta abusividade da multa em caso de não aprovação da operação e o eventual descumprimento dos deveres fiduciários dos administradores da Linx seriam realizadas em outros processos em andamento na CVM, vez que não seriam fundamentos para a interrupção do curso do prazo de convocação da assembleia geral extraordinária (AGE) da Linx.
Por fim, vale destacar a existência de um terceiro julgado do Colegiado sobre a operação da Linx resultante da consulta formulada pela companhia a respeito de eventual impedimento de voto dos acionistas fundadores na referida AGE.
Neste ponto, a SEP manifestou seu entendimento de que os acionistas fundadores não poderiam votar na AGE convocada para deliberar sobre a: (i) aprovação do protocolo e justificação de incorporação das ações da Linx pela Stone; (ii) aprovação da dispensa de ingresso da Stone no Novo Mercado e (iii) aprovação da dispensa da realização da oferta pública de aquisição de ações de emissão da Linx, sob a alegação de que teria havido benefício particular na operação, em virtude das vantagens decorrentes dos contratos de indenização por não concorrência.
No entanto, o Colegiado, por maioria, deferiu o recurso dos acionistas fundadores por entender não estarem configuradas as hipóteses de benefício particular ou de conflito de interesses aptos a gerar impedimento de voto, sem prejuízo da verificação posterior a respeito da regularidade do exercício do direito de voto.
Nota-se, assim, que a CVM tem preferido adotar uma postura mais conservadora em relação aos pedidos de adiamento ou interrupção de assembleias gerais, optando por realizar o controle a posteriori de eventuais condutas violadoras dos deveres fiduciários dos administradores ou dos deveres dos acionistas em operações de reorganização societária que envolvam companhias abertas.