Corporate Governance na DMIF II [1]: Parte I
- Introdução
O governo das sociedades tem, consabidamente, um papel fundamental a competitividade resiliência, a longo prazo, das sociedades [2][3].
Contudo, em anos recentes, a crise financeira [4]tornou evidente as insuficiências existentes em matéria de governo das sociedades [5], o que foi especialmente percecionado no âmbito do setor financeiro, onde, no âmbito da intermediação financeira, as entidades se encontram vinculadas a regras exigentes de conduta e organização, que lhes impõem obrigação atuar de acordo com elevados padrões de diligência, lealdade e transparência, no sentido da proteção dos interesses legítimos do investidor.
A DMIF II veio trazer diversas novidades nesta matéria, pretendendo-se, com o presente artigo, tocar, sumariamente, nalgumas tidas como relevantes e suscetíveis de merecerem especial enfoque. Por forma a assegurar a brevidade e facilidade de leitura, o artigo terá mais que uma parte, constituindo o presente a primeira parte.
Ainda que seja possível identificar na Diretiva dos Serviços de Investimento [6] algumas disposições relevantes no âmbito do governo das sociedades [7] e que a Diretiva dos Mercados de Instrumentos Financeiros (DMIF [8]) [9] tenha representado um salto significativo, em especial em matérias de harmonização de regras de registos e autorizações, bem como em sede de requisitos organizativos e de conduta, é na DMIF II que se verifica um maior aprofundamento nas matérias de governo societário pelo legislador europeu, no âmbito da intermediação financeira, em parte como reação às insuficiências percecionadas durante a crise financeira.
Isso é, aliás, expressamente reconhecido no considerando 5 da DMIF II, segundo o qual “[e]xiste acordo entre os organismos de regulamentação a nível internacional de que as insuficiências em matéria de governo societário numa série de instituições financeiras, nomeadamente a ausência de verificações e de equilíbrios de poderes eficazes no seio das mesmas, foram um fator que contribuiu para a crise financeira (…)” assumindo, assim, que “[a]fim de ter em conta o efeito potencialmente nocivo dessas insuficiências em matéria de governo das sociedades, a Diretiva 2004/39/CE deverá ser completada por princípios mais pormenorizados e normas mínimas. Esses princípios e normas deverão ser aplicados tendo em conta a natureza, o nível e a complexidade das empresas de investimento.”
Em adição à assunção expressa que tal representa quanto à relevância das regras de governo societário, não deixa de resultar manifesto, dos considerandos da DMIF II, a essencialidade da articulação de tais regras com as de conduta, em particular no âmbito e para efeitos da prevenção ou mitigação de eventos de conduta incorreta, em especial quando estes deram azo, ainda recentemente, a atuações em desfavor dos investidores.
2. Antes da DMIF II
DMIF
O artigo 9.º da DMIF já requeria aos Estados-Membros que assegurassem “que as pessoas que dirigem efectivamente as actividades de uma empresa de investimento tenham suficiente idoneidade e experiência, por forma a assegurar a gestão sã e prudente da empresa de investimento”impondo, ainda, que tal gestão feita, pelo menos, por duas pessoas que cumpram tais requisitos.
Adicionalmente, eram ainda consagrados requisitos em matéria de organização estabelecidos para, designadamente, mitigar ou prevenir o risco de conflitos de interesses e assegurar o cumprimento das obrigações estabelecidas naquela diretiva [10].
CRD IV
A necessidade subjacente a uma atuação mais efetiva por parte do legislador no âmbito da DMIF II havia sido mitigada pelos requisitos de governo societário constantes da Diretiva 2013/36/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, relativa ao acesso à atividade das instituições de crédito e à supervisão prudencial das instituições de crédito e empresas de investimento (CRD IV), a qual sendo aplicável às instituições de crédito e empresas de investimento [11] acaba por abranger uma parte significativa das entidades que prestam serviços de intermediação.
Neste contexto, destarte tal circunstância, a DMIF II veio incorporar os requisitos de governo societário que já constavam da CRD IV [12], alargando o seu âmbito de aplicação.
Um dos requisitos mais significativos da CRD IV tem que ver o limite de acumulação de cargos executivos e não executivos, o que veio a ser incorporado pela DMIF II, segundo a qual “[a] acumulação de um número demasiado elevado de cargos de administração não permite que os membros do órgão de administração dediquem tempo suficiente ao desempenho dessa função de acompanhamento”, pelo que “é necessário limitar o número de cargos de administração que um membro do órgão de administração de uma instituição pode exercer simultaneamente em diferentes entidades” [13] [14]. Sem prejuízo do excecionado quanto a cargos de administração em organizações que não prossigam finalidades essencialmente comerciais, como organizações sem fins lucrativos ou de beneficência.
3. A DMIF II
3.1. O órgão de administração
Enquanto a DMIF procurou assegurar que as empresas de investimento eram geridas de forma sã e prudente, impondo requisitos de experiência e idoneidade a quem incumbia a gestão efetiva de tais entidades, a DMIF II vai mais além, concretizando as atribuições e a responsabilidade do órgão de administração, bem como os deveres dos seus membros.
Assim, em linha com o Considerando 54 e o artigo 9.º da DMIF II, por forma a assegurar a “supervisão e controlo efetivos das atividades das empresas de investimento, dos mercados regulamentados e dos prestadores de serviços de comunicação de dados, o órgão de administração deverá ser responsável e prestar contas pela estratégia global da empresa, tendo em conta a sua atividade e perfil de risco”, o órgão de administração como parte da sua função estratégica deve assumir responsabilidades em todo o ciclo de negócio e atividades da entidade, em especial nas seguintes áreas:
- Identificar e definir os objetivos estratégicos da entidade;
- Definir a tolerância (ou o apetite) de risco da entidade e o modelo de governo interno;
- Aprovar a sua organização interna;
- Definir os critérios de seleção e formação de pessoal;
- Assegurar a supervisão efetiva da direção de topo;
- Definição e aprovação das políticas e procedimentos aplicáveis aos produtos e ou serviços oferecidos pela entidade, incluindo as de remuneração (em especial do pessoal das áreas comerciais) e de aprovação novos produtos a distribuídos pela entidade.
Ao estabelecer que “[o] órgão de administração acompanha e avalia periodicamente a adequação e a execução dos objetivos estratégicos da empresa na prestação de serviços e atividades de investimento e de serviços auxiliares, a eficácia dos mecanismos de governação da empresa de investimento e a adequação das políticas relacionadas com a prestação de serviços aos clientes, tomando as medidas apropriadas para corrigir eventuais deficiências” [15], a DMIF II não só impõe deveres contínuos ao órgão de administração como reconhece, e consagra, expressamente a relevância do governo societário, dos mecanismos de governação da entidade.
Assim, é dever do órgão de administração assegurar o bom governo societário da entidade.
Refira-se que, em linha com a DMIF, a DMIF II mantém a imposição dos Estados-Membros assegurarem a verificação prévia (ex-ante)de que as entidades cumprem os requisitos da DMIF II, incluindo os de governo societário, no âmbito de procedimentos de autorização e registo [16].
Em setembro, na segunda parte do presente artigo, tocaremos nos seguintes pontos: 3.2. Os membros do órgão de administração 3.3. A função de Compliancee o Responsável do Sistema de Controlo de Cumprimento 3.4. Algumas políticas e procedimentos em particular4. Notas finais.
Tiago dos Santos Matias [17]
[1] DMIF II identifica a Diretiva 2014/65/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de maio de 2014 relativa aos mercados de instrumentos financeiros, contudo para efeitos do presente estudo, salvo quando expressamente indicado, tal referência pretende incluir também o Regulamento (UE) n.º 600/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho (RMIF), bem toda a legislação e regulamentação que lhes está associada.
[2] Este é, aliás, um dos pressupostos da “Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões – Plano de ação: Direito das sociedades europeu e governo das sociedades – um quadro jurídico moderno com vista a uma maior participação dos acionistas e sustentabilidade das empresas”, Comissão Europeia, COM(2012) 740 final, onde se acrescenta que “[u]m bom governo das sociedades é, acima de tudo, da responsabilidade da empresa em causa(…)”.
[3]“Corporate governance is traditionally defined as the system by which companies are directed and controlled and as a set of relationships between a company’s management, its board, its shareholders and its other stakeholders.”,assim definido pela Comissão Europeia no seu Green Paper – The EU corporate governance framework, COM(2011) 164 final, p.2. Com interesse para este ponto veja-se Ana Perestelo de Oliveira (2017), Manual de Governo das Sociedades, Almedina, p.11, para a qual, citando o Relatório Cadburry de 1992: Report of the Committee in the Financial Aspects of Corporate Governance, «[o] governo das sociedades estuda, sinteticamente, o “sistema pelo qual as sociedades são geridas e controladas”.»
[4] Com interesse para este ponto veja-se OCDE (2010), Corporate Governance and the Financial Crisis – Conclusions and emerging good practices to enhance implementation of the Principles, e OECD (2009), Corporate Governance and the Financial Crisis: Key Findings and Main Messages, ambos disponíveis em www.oecd.org/daf’/corporateaffairs.
[5] Com interesse para este ponto veja-se a posição de Sir Christopher Hogg, à data chairmando FinancialReportingCouncil, Segundo o qual, “[t]he credit crisis was the result of a massive failure of governance at every level” (Burgess, Kate, 2009, “FRC Moots Reform of All Boards.”, no Financial Times de 27 de julho de 2009, disponível em www.ft.com/intl/cms/s/0/5d39ff26-7ae8-11de-8c34-00144feabdc0.html#axzz49J96XWm4.).
[6] Diretiva 93/22/CEE do Conselho, de 10 de maio de 1993, relativa aos serviços de investimento no domínio dos valores mobiliários.
[7] Sobre a Diretiva dos Serviços de Investimento, as opções que lhe estão subjacentes e o avanço que representa, em especial em matéria de harmonização, veja-se WarrenIII, Gilbert Manning, “The European Union’s Investment Services Directive”, University of Pennsylvania Journal of International Business Law, Summer 1994, p.181-220.
[8] Diretiva 2004/39/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de abril.
[9] Segundo aa leitura guiada publicada pela CMVM “[p]resentemente, a regulação dos serviços de investimento é ditada pela Directiva dos Serviços de Investimento ou DSI. Implementada em 1995, o principal propósito da DSI foi o de, à semelhança do que já sucedia no sector bancário, criar condições para que as liberdades de estabelecimento e de prestação de serviços fossem realizáveis ao nível das empresas de investimento, sem descurar a salvaguarda dos interesses dos investidores. Assim, as poucas disposições que aquela directiva dedica aos mercados regulamentados são instrumentais dos referidos objectivos. Ao contrário, a perspectiva adoptada na DMIF é bem mais ambiciosa, o que cedo justificou o abandono da prévia designação desta como DSI 2.” (disponível aqui)
[11] Segundo o seu artigo 3.º, n.º 1, sempre na aceção do Regulamento (UE) n.º 575/2013.
[12] Com interesse para este ponto veja-se, em especial, os artigos 88.º e 91.º da CRD IV e o artigo 9.º da DMIF II.
[13] Vd. considerando 54 da DMIF II.
[14] Vd. artigo 9.º, n.os4 e 6 da DMIF II.
[15] Vd. artigo 9.º, n.º 3 da DMIF II.
[16]Vd. artigos 5.º a 9.º da DMIF II.
[17] Diretor do Departamento de Supervisão Contínua, na CMVM. Advogado. As opiniões expedidas no presente texto são pessoais e apenas vinculam o seu Autor.
No presente estudo as citações em língua inglesa serão realizadas mantendo o texto original para beneficio da tradução pelo leitor.