Cúmulo de funções de trabalhador e administrador – Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 774/2019

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O Tribunal Constitucional (“TC”) veio declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do n.º 2 do artigo 398.º do Código das Sociedades Comerciais (“CSC”), na parte em que determina a extinção do contrato de trabalho celebrado há menos de um ano de titular que seja designado administrador da sociedade empregadora, por violação do disposto na alínea d) do artigo 55.º e na alínea a) do n.º 2 do artigo 57.º da Constituição.

Recorde-se que, de acordo com a letra do artigo 398.º, n.º 2, do CSC, os contratos de trabalho celebrados antes da designação do trabalhador como administrador seriam (a) extintos se celebrados há menos de um ano ou (b) suspensos se celebrados há mais de um ano.

O TC começa por enquadrar o n.º 2 do artigo 398.º do CSC como um corolário do princípio da incompatibilidade de funções de administrador e trabalhador, fundando-o na impossibilidade de conciliar o estatuto de subordinação do trabalhador com a posição do administrador como empregador, na proteção da independência do administrador, e correspondente prevenção de conflitos de interesses, e no princípio da livre destituição dos membros do órgão de administração (o Acórdão, que pode ser consultado através deste link, apresenta uma breve resenha de referências doutrinárias a este respeito).

Especificamente, esclarece o TC, o n.º 2 do artigo 398.º do CSC assenta numa suspeição de fraude sobre um contrato de trabalho celebrado pouco tempo antes do início de funções de administração pelo trabalhador.

Citando o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de novembro de 2014, o TC refere que “É lícito, razoavelmente, temer que o Administrador tenha condicionado a aceitação da designação à obtenção de um vínculo que, apesar de anterior — ao menos formalmente — ao exercício do cargo, se projeta sobretudo no futuro, uma vez cessada a Administração. A questão com que se defronta em tais casos o ordenamento reside justamente em evitar celebrações de contratos temporalmente próximos da designação e presumivelmente fraudulentos, para conseguir a manutenção, após a cessação do cargo de Administrador, de um vínculo remunerado com a sociedade”, notando, porém, que a bondade desta regra era questionada, quer com base na sua desnecessidade (com base no argumento de que as regras gerais da invalidade do contrato de trabalho bastariam para acautelar a eventualidade de aproveitamento ilícito da sociedade), quer com base na possibilidade de a própria extinção do vínculo laboral ser utilizada de forma abusiva.

A maioria da doutrina vinha defendendo a inconstitucionalidade do n.º 2 do artigo 398.º do CSC, alegando a sua qualificação, na parte que estabelece a caducidade dos contratos de trabalho celebrados há menos de um ano, como “legislação do trabalho”, e a violação do direito de participação das organizações de representação dos trabalhadores no seu processo legislativo.

O TC veio confirmar a qualificação desta norma como integrando o conceito de legislação do trabalho (desde logo, por os seus efeitos se produzirem principalmente na relação laboral e, concretamente, na extinção da relação laboral), sendo, por conseguinte, relevante para efeitos do direito de participação das organizações representativas dos trabalhadores.

Considerando ter sido preterida tal participação, exigida constitucionalmente, o TC conclui que o n.º 2 do artigo 398.º do CSC está inquinado por um vício de natureza formal, sendo a consequência a inconstitucionalidade.

No entanto, tendo em conta que a norma em análise estava em vigor há mais de 30 anos e o facto de poder ter caducado um número significativo de contratos de trabalho em execução da mesma, e atendendo também à gravidade do vício em causa, o TC decidiu, por razões de equidade e de segurança jurídica, ressalvar os efeitos produzidos até à data da publicação da declaração de inconstitucionalidade.

O efeito prático desta decisão traduz-se na suspensão, a partir da designação para o conselho de administração da entidade empregadora, do contrato de trabalho celebrado por um trabalhador antes dessa designação, independentemente de o mesmo ter sido celebrado há mais ou menos de um ano.

Este Acórdão do TC veio, assim, esclarecer uma questão de grande relevância prática e que há muito era debatida na doutrina e na jurisprudência, em especial, na perspetiva do corporate governance.