ESG, sustentabilidade e dever de diligência empresarial – Desenvolvimentos recentes

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  1. Enquadramento do problema

Na União Europeia, as preocupações em torno da sustentabilidade, do dever de diligência e da responsabilidade empresarial motivaram uma trilogia de actos relevantes, no último biénio, a saber[1]:

  1. A versão da Proposta de Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa ao dever de diligência das empresas em matéria de sustentabilidade adoptada pelo Conselho da União Europeia, em 1 de Dezembro de 2022[2]

A versão adoptada pelo Conselho, em 1 de Dezembro de 2022[3], caracteriza-se, entre outros aspectos:

  • Primeiro, por alterações no âmbito de aplicação da Directiva – cfr. artigo 2.º;
  • Segundo, por modificações no catálogo de definições – cfr. artigo 3.º – designadamente, com:
  • A introdução do conceito de “parceiro empresarial” – cfr. alínea e);
  • O aditamento da alínea e)-A), relativa ao conceito de “Relação empresarial” – definição que se afasta da prevista na anterior alínea e);
  • A eliminação do conceito de “relação empresarial estabelecida” – cfr. anterior alínea f);
  • A substituição do conceito de “cadeia de valor” por “cadeia de atividades” – cfr. alínea g);
  • A eliminação das definições de “administrador” e de “conselho de administração” – cfr. anteriores alíneas o) e p));
  • O aditamento do conceito de “Reparação” – cfr. alínea t)
  • Terceiro, por uma densificação dos pressupostos da responsabilidade civil das empresas e pelo esclarecimento de outros aspectos do regime (cfr. artigo 22.º);
  • Quarto, por um aparente retrocesso na via da responsabilização directa dos administradores (em resultado da eliminação dos artigos 25.º e 26.º e, consequentemente, dos Considerandos n.ºs 63 a 64).

O cumprimento do “dever de diligência” em matéria de direitos humanos e de ambiente (densificado nos artigos 4.º a 11.º da versão adoptada pelo Conselho, em 1 de Dezembro de 2022[4]) pressupõe que as empresas visadas pratiquem os comportamentos necessários e implementem as medidas, as estratégias e os procedimentos adequados para, por um lado,prevenir a ingerência prejudicial nos direitos humanos e no ambiente e, por outro lado, reagir (por via da correspondente mitigação e resolução) aos efeitos negativos concretamente causados[5].

O conceito de “efeito negativo” é definido no artigo 3.º, alíneas b) – “Efeito negativo no ambiente”, c) – Efeito negativo nos direitos humanos” e c-A) “Efeito negativo”. Por sua vez, os artigos 6.º a 8.º da Proposta de Directiva concretizam as acções a desenvolver pelas empresas no cumprimento do dever de diligência, designadamente, no que respeita a: “Identificar os efeitos negativos reais e potenciais” (artigo 6.º), “Priorização dos efeitos negativos reais e potenciais” (artigo 6.º-A), “Prevenir efeitos negativos potenciais” (artigo 7.º), e “Fazer cessar os efeitos negativos reais” (artigo 8.º)O Anexo I da Proposta de Directiva, na versão adoptada pelo Conselho, em 1 de Dezembro de 2022, enumera “direitos e proibições específicos cujo abuso ou violação constitua um efeito negativo nos direitos humanos [artigo 3.º, alínea c)] ou efeitos negativos no ambiente [artigo 3.º, alínea b)][6].

  1. O regime de responsabilidade civil das empresas (cfr. artigo 22.º da Proposta de Directiva)[7]

Como se antecipou, os pressupostos da responsabilidade civil das empresas foram clarificados na versão adoptada pelo Conselho, em 1 de Dezembro de 2022[8].

Na Nota que acompanha a versão revista do texto, na secção relativo aos “Principais elementos do compromisso”[9], refere-se que “[o] artigo 22.º foi alterado de forma significativa, a fim de garantir clareza jurídica e segurança para as empresas e de evitar interferências irrazoáveis nos sistemas de direito da responsabilidade civil dos Estados-Membros[10].

Em concreto, aditou-se a referência explícita à natureza jurídica do lesado (que se admite que possa ser uma pessoa singular ou colectiva), assim como as condições de que depende a constituição da obrigação de indemnizar por uma empresa, com este fundamento, a saber: “um dano causado a uma pessoa singular ou coletiva, a violação de um dever, o nexo de causalidade entre o dano e a violação do dever e um incumprimento (com dolo ou negligência” [11].

A responsabilidade empresarial prevista no artigo 22.º configura uma hipótese de responsabilidade civil, com a natureza de responsabilidade delitual ou aquiliana. Por outro lado, é uma responsabilidade subjectiva, que pressupõe uma actuação ou uma omissão censurável.

Na actual redacção do preceito, passou a prever-se expressamente “o direito das vítimas de efeitos negativos nos direitos humanos ou no ambiente a reparação integral”, precisando-se que “o direito a reparação integral não deverá conduzir a uma reparação excessiva, por exemplo, através de indemnizações punitivas[12].

Esclarece-se, ainda, que, havendo uma pluralidade de responsáveis (a empresa visada e uma filial ou parceiro empresarial), a responsabilidade será solidária.

Mantém-se a previsão relativa à exclusão de responsabilidade da empresa, embora com uma redacção alterada e alinhada com os novos conceitos previstos no artigo 3.º: assim, a empresa não é responsável “se os danos tiverem sido causados apenas pelos seus parceiros empresariais na sua cadeia de atividades” (cfr. artigo 22.º, n.º 1 – 2.º parágrafo). Subsiste, também, a hipótese de responsabilização das filiais ou de quaisquer parceiros empresariais directos e indirectos da cadeia de actividades da empresa (cfr. artigo 22.º, n.º 3), tendo-se aditado o esclarecimento relativo à existência de uma responsabilidade solidária (cfr. artigo 22.º, n.º 3 – 2.º parágrafo).

Por último, os números 4 e 5 do texto revisto correspondem, com ligeiras alterações estilísticas (no que respeita ao número 5) aos anteriores números 4 e 5 da Proposta de Directiva de 23 de Fevereiro de 2022.

  1. A alteração relativa ao “dever de diligência dos administradores”: a supressão dos artigos 25.º e 26.º da Proposta de Directiva

A versão da Proposta de Directiva adoptada pelo Conselho da União Europeia, em 1 de Dezembro, suprimiu os artigos 25.º e 26.º que constavam do texto de 23 de Fevereiro de 2022. De igual modo, eliminou, do catálogo de definições, os conceitos de “administrador” (cfr. anterior artigo 3.º, o)) e de “conselho de administração” (cfr. anterior artigo 3.º, p)), assim como os Considerandos n.ºs 63 a 64.

O artigo 25.º (sob a epígrafe “Dever de diligência dos administradores”) preceituava que os administradores das empresas, “no cumprimento do seu dever de agir no interesse da empresa”, deveriam ponderar “as consequências das suas decisões em matéria de sustentabilidade, incluindo, se for caso disso, as consequências em termos de direitos humanos, alterações climáticas e ambientais, inclusive a curto, médio e longo prazo” (cfr. n.º 1).

Por sua vez, o artigo 26.º (sob a epígrafe “Criação e supervisão do dever de diligência”) precisava que a responsabilidade pela “aplicação e supervisão das medidas relativas ao dever de diligência a que se refere o artigo 4.º” caberia aosadministradores das empresas.

Noutros termos, os administradores seriam responsáveis por criar, aplicar e fiscalizar os processos e as medidas relativos ao dever de diligência empresarial em matéria de sustentabilidade, e por adaptar a estratégia empresarial ao dever de diligência.

Como se antecipou, estes preceitos foram suprimidos no texto revisto da Proposta de Directiva e adoptado pelo Conselho, em 1 de Dezembro de 2022. A opção foi fundamentada nos seguintes termos: “[d]evido às grandes preocupações manifestadas pelos Estados-Membros que consideraram que o artigo 25.º constituía uma interferência inadequada nas disposições nacionais relativas ao dever de diligência dos administradores e podia comprometer o dever de os administradores agirem no melhor interesse da empresa, as disposições foram suprimidas do texto[13]. No que respeita ao artigo 26.º, entendeu-se que “o teor do artigo 26.º estava estreitamente ligado ao processo de dever de diligência”, pelo que “o artigo foi suprimido e os seus principais elementos foram transferidos para a disposição relativa à integração do dever de diligência nas políticas e nos sistremas de gestão dos riscos da empresa (artigo 5.º, n.º 3), tendo em conta a variedade dos sistemas de governação de empresas e a liberdade destas para regularem as suas questões internas[14].

A derrogação dos artigos 25.º e 26.º da Proposta de Directiva não parece comprometer, por si só, o juízo quanto à existência de um nexo entre o dever de diligência empresarial e o dever de diligência dos administradores relativamente à empresa (nos termos autorizados pelo Direito nacional)[15]. Com efeito, o perspectivado futuro quadro normativo autoriza o entendimento segundo a qual a actuação dos administradores “no interesse da empresa” pressupõe uma “renovada racionalidade empresarial”, para o que se impõe privilegiar as medidas e as decisões que se afigurem, em cada momento, como as mais adequadas também com as exigências de sustentabilidade e, designadamente, com as preocupações relativas aos direitos humanos e ao ambiente.

Aos administradores será, pois, exigido que ponderem o interesse dos vários sujeitos cujas esferas jurídicas são susceptíveis de serem afectadas pelas decisões tomadas, desde os shareholders aos stakeholders (designadamente, as “partes interessadas”, nos termos definidos pelo artigo 3.º, n) da Proposta de Directiva, na versão adoptada pelo Conselho, em 1 de Dezembro de 2022[16]).

Significa isto que, doravante, as decisões empresariais serão sindicadas e escrutinadas considerando também os impactos sociais, as perturbações e os efeitos negativos (potenciais e reais) causados em comunidades locais, nos direitos fundamentais e no ambiente.

Por último, justifica questionar-se se os critérios ESG constituem, em rigor, uma realidade com um alcance revolucionário no Direito português ou se, antes, podem ser acomodados no Código das Sociedades Comerciais, em concreto, no artigo 64.º, n.º 1, que enuncia os deveres fundamentais dos gerentes ou administradores da sociedade, vinculando-os a actuar “com a diligência de um gestor criterioso e ordenado” e a observar, designadamente, “deveres de lealdade, no interesse da sociedade, atendendo aos interesses de longo prazo dos sócios e ponderando os interesses dos outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, tais como os seus trabalhadores, clientes e credores” (cfr. n.º 1, alínea b)). A formulação gramatical do artigo 64.º, n.º 1, b) do CSC parece, assim, ter a aptidão para acomodar as novas directrizes em matéria de sustentabilidade empresarial, ao relevar, explicitamente, a atendibilidade dos interesses de outros sujeitos, para além dos sócios.

Nesta medida, a não demonstração de uma (renovada) “racionalidade empresarial”, considerando os resultados da decisão na sociedade, na comunidade local ou no ambiente, pode, no pressuposto de haver danos indemnizáveis e de se demonstrar a violação de um dever fundamental dos administradores, fundamentar uma pretensão indemnizatória a actuar directamente contra a administração da empresa.

  1. Conclusão

O ESG e os perspectivados desenvolvimentos normativos no contexto da União Europeia têm uma projecção prática relevante, ao impor a realização de investimentos responsáveis e decisões empresariais que não tenham um efeito negativo (potencial ou real) nos direitos humanos, na sociedade e no ambiente[17].

Um comportamento empresarial racional e responsável vai, por sua vez, minimizar os riscos empresariais e, em consequência, reduzir as hipóteses de litigância sustentada na inobservância dos parâmetros de sustentabilidade e do dever de diligência empresarial.

Esta é uma evolução em curso, e que determinará, no futuro próximo, a necessidade de renovar em termos substantivos (e não puramente estilísticos, na base de meras declarações de intenção) os modelos decisórios, com a consequente reordenação dos (tradicionais) parâmetros de gestão empresarial.

 

 

[1]       V. os nossos Responsabilidade empresarial e dever de diligência – Da vinculatividade da futura matriz sobre “ESG” (Environmental, social and governance), acessível em https://governancelab.org/responsabilidade-empresarial-e-dever-de-diligencia-da-vinculatividade-da-futura-matriz-sobre-esg-environmental-social-and-governance/, e o mais recente ESG, racionalidade empresarial, e novos contenciosos (acessível em https://www.revistadedireitocomercial.com/#rdc), que aqui se retoma em parte.

[2]       V. o nosso ESG, racionalidade empresarial, e novos contenciosos, cit., que aqui se segue de perto.

[3]       O texto de compromisso corresponde à versão que saiu da reunião do Comité de Representantes Permanentes (“Coreper”) de 30 de Novembro de 2022 – cfr. https://data.consilium.europa.eu/doc/document/ST-15024-2022-REV-1/pt/pdf, p. 4. Com a adopção da “Posição de Negociação” pelo Conselho, fica a Presidência do Conselho mandatada para iniciar as negociações com o Parlamento Europeu. O Comunicado de imprensa do Conselho Europeu pode ser consultado aqui: https://www.consilium.europa.eu/pt/press/press-releases/2022/12/01/council-adopts-position-on-due-diligence-rules-for-large-companies/.

[4]       Uma das novidades reside no aditamento do artigo 4.º-A ao articulado, sob a epígrafe “Dever de diligência a. nível do grupo”.

[5]       V. o nosso Responsabilidade empresarial e dever de diligência – Da vinculatividade da futura matriz sobre “ESG” (Environment, social and governance), cit.

[6]       Cfr. Nota acessível em https://data.consilium.europa.eu/doc/document/ST-15024-2022-REV-1/pt/pdf, p. 10.

[7]       V. o nosso ESG, racionalidade empresarial, e novos contenciosos, cit., que aqui se segue de perto.

[8]       A matéria relativa à responsabilidade civil é objecto dos Considerandos n.ºs 56 a 62.

[9]       Cfr. III – pp. 4-11 (em concreto, Ponto E, n.ºs 27 a 29, pp. 9-10), acessível em https://data.consilium.europa.eu/doc/document/ST-15024-2022-REV-1/pt/pdf.

[10]     Cfr. Ponto E, n.º 27, p. 9 – acessível em https://data.consilium.europa.eu/doc/document/ST-15024-2022-REV-1/pt/pdf.

[11]     Cfr. Ponto E, n.º 27, p. 9 – acessível em https://data.consilium.europa.eu/doc/document/ST-15024-2022-REV-1/pt/pdf.

[12]     Cfr. Ponto E, n.º 27, p. 9 – acessível em https://data.consilium.europa.eu/doc/document/ST-15024-2022-REV-1/pt/pdf.. O conceito de “Reparação” foi aditado no artigo 3.º, t), e é definido nos seguintes termos: “a reparação financeira ou não financeira concedida pela empresa à pessoa ou pessoas afetadas pelo efeito negativo real, inclusive repondo a pessoa ou pessoas afetadas ou o ambiente na situação em que se encontrariam se o efeito negativo real não tivesse ocorrido, a qual deve ser proporcionada à importância e ao alcance do efeito negativo, e à implicação da empresa nesse efeito”.

[13]     Cfr. Ponto F, n.º 30 da Nota justificativa que acompanha a Orientação Geral do Conselho Europeu, cit., p. 10 – acessível em https://data.consilium.europa.eu/doc/document/ST-15024-2022-REV-1/pt/pdf.

[14]     Cfr. Ponto F, n.º 30 da Nota justificativa que acompanha a Orientação Geral do Conselho Europeu, cit., p. 10 – acessível em https://data.consilium.europa.eu/doc/document/ST-15024-2022-REV-1/pt/pdf.

[15]     V. o nosso ESG, racionalidade empresarial e novos contenciosos, cit., que aqui se reproduz, em parte.

[16]     Consideram-se “Partes interessadas”: “os trabalhadores da empresa, os trabalhadores das suas filiais, sindicatos e representantes dos trabalhadores, consumidores e outros indivíduos, grupos, comunidades ou entidades cujos direitos ou interesses sejam ou possam ser afetados pelos produtos, serviços e operações dessa empresa, das suas filiais e dos seus parceiros empresariais, incluindo organizações da sociedade civil, instituições nacionais de direitos humanos e ambientais e defensores dos direitos humanos e do ambiente”.

[17]     V. o nosso ESG, racionalidade empresarial e novos contenciosos, cit., que aqui se reproduz, em parte.