Justiça penal e corporate governance

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Merece colocar no topo de prioridades a análise a fundo da função que o sistema jurídico-penal deve desempenhar no âmbito do governo societário. À semelhança do que sucede com a responsabilidade civil, a análise dos pressupostos da responsabilidade criminal pela administração e fiscalização de empresas deve ser seriamente confrontada com a densificação funcional emprestada pelo corporate governance, em termos legislativos e recomendatórios. Como referia o relatório da CMVM de 2006 sobre propostas de revisão do CSC: “parece ser igualmente pacífico que a lei deve recortar um núcleo mínimo dos deveres dos administradores e dos titulares dos órgãos de fiscalização, não só para fornecer modelos de decisão claros mas também para permitir a efectivação aplicativa de previsões normativas decorrentes do incumprimento dos deveres societários”. Recorde-se, aliás, que a lei norte-americana Sarbanes-Oxley (2002) colocou um enfoque importante em temas sancionatórios. Em Portugal, porém, o catálogo de crimes patrimoniais em empresas (máxime o crime de gestão danosa no setor público e cooperativo: art. 235.º do Código Penal) e a parte sancionatória do Código das Sociedades nunca foram submetidos a uma reavaliação de fundo em articulação com os avanços de governo societário das duas últimas décadas.

O tema merece agora ser reapreciado em virtude da consagração, no ano passado, de um novo tipo criminal mobiliário no Código dos Valores Mobiliários: o uso de informação falsa ou enganosa na captação de investimento. Trata-se de uma novidade legislativa assumida como resposta política aos danos provocados pela operação de aumento de capital que precedeu o colapso do Banco Espírito Santo (2014), que deve ser analisada no seu conteúdo e nas suas implicações.

Determina-se no art. 379.º-E CVM que os titulares de um órgão de direção ou administração de um intermediário financeiro, de uma entidade que detenha uma participação qualificada num intermediário financeiro ou de uma entidade emitente de valores mobiliários ou de outros instrumentos financeiros que, por qualquer forma, deliberem ou decidam, para essa entidade ou para outrem, a captação de investimentos, a colocação de valores mobiliários ou de instrumentos financeiros ou a captação de financiamento por qualquer outro meio, utilizando para o efeito informação económica, financeira ou jurídica falsa ou enganosa, são punidos com pena de prisão de 1 a 6 anos.

O primeiro aspeto criticável deste preceito é o de que o legislador coloca o enfoque da incriminação na deliberação adotada sobre levantamento de fundos com base em informação deficitária. O tipo criminal de base não requer prejuízo dos investidores, nem influência nos preços, nem captação de investimento para a conduta se revelar passível de censura penal. Surge, pois, uma antecipação extrema da tutela jurídica da distribuição de instrumentos financeiros com base em informação deficitária.

Sucede, porém, que a lesão de prescrições em matéria informativa já tem respostas normativas ao nível da responsabilidade civil (nomeadamente no âmbito da responsabilidade pelo prospeto) e contraordenacional. Além disso, este novo tipo penal parece esquecer a manipulação de mercado ou a vigência de tipos penais gerais, tais como os crimes de burla ou de falsificação de documentos, de branqueamento de capitais ou de prestação de informações falsas no âmbito societário que são aptos a corrigir comportamentos ilícitos no mercado de valores mobiliários ligados a deficiências informativas.

Um dos elementos mais marcantes deste tipo penal é o de determinar a imputação subjetiva ainda que a título negligente – embora nesse caso a pena seja reduzida a metade nos seus limites mínimos e máximos. Tal mostra implicações em termos dos critérios interpretativos da norma e dos deveres de cuidado a empregar em casos de operações de captação de investimento.

Os artigos 7.º e 9.º da Diretiva 2014/57/UE determinam que as sanções penais aplicáveis em matéria de abuso de mercado devem ser proporcionais: nessa medida, o art. 379.º-E deve ser interpretado à luz deste princípio. De acordo com o princípio da proporcionalidade, o aplicador do direito deve aplicar um critério de culpa particularmente exigente para merecer a tutela penal: se a culpa for leve ou média, revela-se suficiente a resposta a imputação de danos com base em responsabilidade civil; apenas em caso de negligência grosseira é que se deve ter por preenchido o tipo penal.

Em balanço final, importa salientar que não há diploma europeu algum que obrigue à adoção desta solução. Designadamente, a Diretiva 2014/57/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de abril de 2014 não obriga à consagração deste tipo criminal, embora admita o reforço de sanções penais. Sucede que as respostas normativas paralelas encontradas em ordenamentos jurídicos próximos revelam um equilíbrio ausente na delimitação do tipo penal consagrado no art. 379.º-E. Assim, o crime de falsidade do prospeto em Itália reclama o objetivo de obtenção de um enriquecimento injusto, a intenção de enganar e o conhecimento da falsidade do prospeto por parte do agente e uma ligação causal entre o défice informativo e o erro do investidor. Por seu turno, em Espanha o crime de falsidade no mercado de capitais exige uma conduta dolosa na falsificação de informação com o propósito de captar investidores ou depositantes.

Em suma: este novo tipo criminal combina, numa aliança perversa, goldplating e experimentalismo regulatório, suspeitando-se que a sua aplicação possa ter como efeitos o de contramotivar ofertas de distribuição dirigidas ao mercado nacional e o de contribuir, ainda que inadvertidamente, para uma retração ainda mais significativa do mercado nacional de valores mobiliários.