O Conselho de Administração em Tempos de Crise
Nos últimos 20 anos temos assistido a um aumento de eventos que produzem sérias disrupções na atividade das empresas e nos seus modelos de negócio. Apenas desde o ano 2000 contamos a bolha especulativa das dotcom, o ataque terrorista de 11 de Setembro de 2001, a crise financeira mundial de 2008 e a profunda recessão e crise das dívidas soberanas na Europa, o aumento do populismo no mundo ocidental e a instabilidade geopolítica e de comercio externo: desde a anexação da Crimeia pela Federação Russa, à instabilidade na Catalunha, passando pelas guerras comerciais entre China e Estados Unidos, e acabando no processo de saída do Reino Unido da União Europeia. Na altura em que escrevo este artigo, vivemos uma situação de lockdown a nível mundial, enfrentando uma pandemia que promete reclamar muitas vidas e lançar a economia mundial numa profunda recessão que alguns estimam poder vir a ser pior do que a ainda recente crise financeira de 2008.
A globalização veio criar interdependências que na situação atual estão já a ser vistas como constrangimentos: a crise pandémica vai ter um potencial de colocar em evidência e exacerbar tensões e retóricas já existentes. Por exemplo, é de esperar o crescimento do populismo, de discursos antiglobalização e, ao que parece, da erosão dos pilares do projeto Europeu.
Neste mundo extraordinariamente volátil, incerto, complexo e tantas vezes ambíguo, e mais concretamente neste momento de crise, o papel dos conselhos de administração assume uma preponderância enorme. Enquanto que, em momentos de maior estabilidade, o Conselho pode ter uma atitude de maior distanciamento e monitorização da execução do plano estratégico pelo executivo, em momentos de crise, os conselhos de administração são chamados a contribuir mais, a estar mais envolvidos e a garantir que as decisões tomadas em resposta à crise são adequadas, proporcionais e em linha com os princípios, valores e propósito da sociedade. Nestas circunstâncias, a liderança do conselho de administração assume particular relevância.
Chairman e CEO: Cargos separados ou juntos?
Um dos debates mais recorrentes no domínio do governo societário tem a ver com a estrutura de liderança do conselho de administração. Os que defendem que a posição de Chairman e CEO (equivalente ao Presidente Executivo) devem ser ocupadas pelo mesmo indivíduo, indicam que isso permite uma liderança inequívoca, uma coesão maior entre administradores executivos e não-executivos e uma maior estabilidade estratégica; esta foi aliás, e durante muito tempo, a norma nos Estados Unidos e, mesmo hoje, continua a ser substancial. De acordo com o Spencer Stuart Board Index, em 2019, apenas 53% das empresas listadas no Standard & Poors 500, tinham os lugares de Chairman e CEO ocupados por indivíduos distintos, e apenas 33% dos Chairmen eram materialmente independentes. Os que defendem a separação das funções de Chairman e CEO, indicam que concentrar todo o poder no mesmo individuo arrisca a que o conselho de administração se torne o eco do CEO, além de contribuir para distrair o CEO das suas funções executivas.
Além disso, defendem, a separação de poderes, propicia ao CEO um recurso e um mentor, com quem pode trocar ideias, procurar apoio e respaldo na gestão de expectativas dos acionistas, investidores e outros stakeholders. No caso do Reino Unido, o Spencer Stuart Board Index indica que em 2019, 94,6% das empresas integrantes do FTSE 150 tinha os cargos separados. Em Portugal, existe também um cenário misto com empresas do Psi-20 com separacao dos cargos (embora nem sempre com o Chairman considerado independente) e empresas com ambos os cargos ocupados pelo mesmo individuo. Como e fácil de ver, não existe unanimidade sobre a melhor forma de constituir a liderança do conselho de administração. Mesmo a investigação neste âmbito não consegue concluir de forma clara se uma ou outra estrutura de liderança tem maior relação com um desempenho superior da empresa.
Separados ou juntos, durante tempos de crise, existem um conjunto de requisitos para que o conselho seja liderado de forma efetiva.
Liderar o Conselho em tempos de crise: o papel do chairman
Durante tempos de crise, o conselho de administração assume, geralmente, uma preponderância maior. Isto porque muitas das decisões que se impõem extravasam as competências do Administrador-Delegado. A atual pandemia de Covid-19 significa para muitas empresas uma redução drástica da procura, quebras abruptas dos preços e consequente rutura de tesouraria (em muitos casos empresas com balancos frágeis mesmo antes da crise). O conselho de administração terá de acionar planos de contingência, e, entre outras decisões, poderá ter de decidir opções de sobrevivência:
- Planos de lay-off de uma parte substancial da força de trabalho, e políticas de redução de custos. Em casos de crise prolongada, podem ser necessárias medidas mais permanentes de redução de pessoal;
- Alienação de ativos não core, para realização de liquidez e focalização nos mercados mais relevantes;
- Suspensão da política de dividendos;
- Aumentos de capital;
- Em alguns casos pode ser considerada a fusão da empresa com um concorrente ou, pelo contrário, pode haver a oportunidade de adquirir concorrentes, com ativos complementares, menos bem preparados para enfrentar a crise;
- Determinar a estratégia de crescimento no pós-crise.
Todas as opções estratégicas acima descritas são na maioria dos casos da competência do Conselho de Administração. Conselhos de Administração que já tinham tensões e desalinhamentos latentes antes da crise, terão dificuldade em debater e aprovar as medidas certas; Aqueles Conselhos que, por outro lado, eram antes da crise apenas o reflexo do Presidente Executivo do Conselho de Administração, estarão também em risco. O Chairman / Presidente Não-Executivo deve liderar o conselho de administração garantindo que:
- Todos os intervenientes estão altamente conscientes do propósito societário – dos seus valores e princípios – e que as decisões tomadas têm uma relação com este propósito. Poderá ser necessário tomar uma ou outra decisão cuja relação com o propósito não é óbvia no curto prazo, mas inequívoca no longo-prazo.
- Existe inclusividade e que todos são ouvidos e contribuem para as decisões. Deve haver diversidade e inclusividade no debate e unidade absoluta na execução. Isto não quer dizer que se discuta ad aeternum; em tempos de crise o tempo de resposta é muitas vezes crítico e há menos espaço para consenso. O princípio de Pareto é sempre útil aqui: 20 por cento das causas, produzem oitenta por cento dos efeitos.
- As decisões são tomadas o mais possível baseadas em evidência e não em qualquer visão pessoal; a experiência é importante, mas a evidência deve sempre ser levada em linha de conta.
- A equipa executiva, ou um subgrupo desta, tem a capacidade de liderança para a implementação das medidas decididas em sede de conselho de administração. As circunstâncias pessoais de cada executivo podem requerer que as segundas e até terceiras linhas sejam chamadas a desempenhar um papel de liderança mais relevante. Neste contexto, é preciso repensar os planos de sucessão da empresa.
- A resposta à crise no curto e medio prazo, não compromete ativos que representam vantagem competitiva e que serão motores de crescimento futuro. Proteger projetos inovadores com elevado potencial é importante para garantir o futuro.
- Garantir que os acionistas e outros stakeholders da sociedade são tratados de forma justa e equilibrada; isto implica também manter uma comunicação constante e muito objetiva com todos os stakeholders.
Uma crise é sempre uma oportunidade para repensar o que fazemos, uma oportunidade para rever prioridades e para aprender. As relações do conselho de administração podem sair reforçadas num processo de crise. Contudo, as crises podem também deixar uma nota amarga nas relações. É fundamental que o Presidente do Conselho de Administração exponha e ajude a resolver as tensões que possam emergir do processo de crise, para que a empresa possa seguir em frente.
*Artigo publicado na Diligent em 14 de Abril de 2020.