Mercados, gerações e tendências (ou o futuro logo ali)

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“I suppose it’s like the ticking crocodile, isn’t it? Time is chasing after all of us.” (J.M Barrie, Peter Pan)

I – A regulação e os mercados financeiros conheceram nos últimos anos significativas convulsões e transformações. 10 anos após a eclosão da crise, e tantos eventos e mutações depois, fecha-se um ciclo – e abre-se uma dúvida sobre o futuro dos mercados, e uma oportunidade para começar a escrevê-lo. O problema do futuro, como dizia P. Valérie, é que já não é o que era – e pertence a outra geração.

II – Em cada tempo, o mercado reflete a visão de uma geração. Em breve o sistema financeiro será conduzido por e para uma nova geração, altamente tecnológica, criativa, multicultural, autodeterminada, educada e globalizada, empática, menos consumista, menos tolerante para com falhas éticas no trabalho e negócios e intensamente comprometida com valores de sustentabilidade, solidariedade e justiça social, com tendência para valorizar, em todas as suas escolhas, opções verdes ou de impacto social. Mas esta será também uma geração ansiosa, em termos individuais e coletivos, com a desadequação dos instrumentos privados de poupança e dos modelos públicos de proteção social.

III – São, assim, claras as grandes tendências que a próxima geração marcará para os serviços e mercados financeiros: tecnologia; investimento social; autorregulação; boa governação. E a regulação será apenas um capricho, se não absorver em tempo os sinais do seu tempo.

IV – O movimento da inovação tecnológica nos serviços financeiros (Fintech) está já aí, e avança com uma força inexorável (que nem todos, nem sempre, quisemos admitir). Depois da negociação algorítmica (hoje incorporada, mas ainda recentemente alvo da desconfiança dos reguladores), crowdfunding, sandboxes, blockchain, robot advice, ICO, tokens, criptomoedas, são conceitos já hoje incluídos no léxico comum e, no futuro, formas banais do investimento.

O Fintech tem – como todas as evoluções – riscos: de abuso, menor transparência, novas formas de fraude. De falhas de supervisão, pela diferente velocidade do conhecimento dos supervisores face à vertigem da evolução e inovação tecnológicas neste domínio. O risco natural daquilo que não conhecemos. E o supremo risco do alheamento dos reguladores e policy makers em relação à realidade, e da negação da inovação e do seu potencial: oferta de serviços mais sofisticados, menos complexos, a custos menores; e um potencial relevante, se devidamente compreendido e conformado, de vantagens para a inclusão financeira, o rigor e a transparência das operações e a eficácia da supervisão. É simplesmente uma transformação a aceitar e acompanhar. Não estar lá deixou, há muito, de ser uma opção para os reguladores. Recusar a transformação digital seria, de uma vez só, negar a realidade e perder em definitivo a oportunidade de a conformar, em termos adequados e proporcionados.

V – Mas os digital natives querem mais do que isso. Para os Millennials, o retorno dos seus investimentos – em tempo, trabalho ou dinheiro – mede-se em relevância financeira, mas também social, ambiental, cultural, etc. O paradigma do investimento focado apenas em retorno financeiro está definitivamente em crise, sendo inevitável a sua substituição por um novo paradigma, assente em novos modelos ajustados aos desígnios diferentes da próxima geração. A insatisfação dos Millennials em relação ao modelo e instrumentos especulativos tradicionais, por um lado, e a sua inquietação face à insuficiência dos instrumentos disponíveis de poupança e proteção social, por outro, determinam uma solicitação crescente, dirigida aos policy makers e agentes do mercado, para a conceção de novos modelos que acomodem as preocupações de sustentabilidade e impacto social dos novos investidores, à procura de um novo sentido para o investimento. E exigem, progressivamente, das empresas privadas que respondam a desafios sociais para além do interesse de curto prazo e cumpram, em paralelo, um propósito social.

Tal foi já assimilado pelos maiores investidores institucionais, que marcam as tendências e o caminho, como o revela a recente carta de Larry Fink (Blackrock) aos CEO, onde se assume uma nova abordagem. O investimento social é agora mainstream, e determina mudanças profundas nos instrumentos, modelos e modo-de-ser do investimento institucional. A inadequação de estratégias de curto prazo para prosseguir objetivos de impacto e sustentabilidade social impõe a sua substituição progressiva por metas de longo prazo; e estas ditam, por sua vez, a substituição de estratégias de saída (exit) por estratégias de ativismo e engagement (voice) nas empresas objeto de investimento; um rigoroso enquadramento das medidas de curto prazo naquelas metas; o desenvolvimento de instrumentos de investimento de impacto (green bonds, títulos de impacto, fundos de investimento social e todos os que estão por inventar); a substituição do ceticismo dos agentes económicos e dos reguladores pela sua adesão a um novo paradigma de investimento; mais exigentes modelos de governação, ao serviço de objetivos de longo prazo e de retoma da confiança dos investidores e aforradores; e um compromisso global de todos os stakeholders com este novo mercado, orientado para objetivos de sustentabilidade, inclusividade e bem estar social para além da clássica procura de retorno financeiro.

VI – Tudo isto será, contudo, irrelevante sem a concorrência de outros pressupostos fundamentais da transformação dos mercados financeiros. A construção de um sistema ajustado aos propósitos da geração seguinte, assente na inovação tecnológica e orientado para objetivos supra individuais, dependerá verticalmente de outras transformações estruturais e culturais igualmente ajustadas ao perfil comportamental dessa geração. A autodeterminação, a globalização, a mais elevada literacia e a baixa tolerância para com falhas éticas nos negócios que caraterizam os Millennials apontam para uma melhor compreensão do investimento, menor impulsividade e maior exigência na monitorização do desempenho das instituições. E neste contexto, nenhuma transformação se dará no mercado sem que uma outra aconteça nos comportamentos dos investidores (maior responsabilização), das instituições (autorregulação e adesão voluntária às melhores práticas de governação) e dos órgãos de fiscalização (consciencialização das suas responsabilidades e da relevância do seu contributo). Só assim o crocodilo do tempo não nos apanhará.

 

Publicado na revista Exame de 31 de janeiro de 2018