MP da Liberdade Econômica e a desconsideração da personalidade jurídica

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Motivado pelo anseio de grande parte da população de ver os serviços públicos a funcionar sem burocracias ou complicações desnecessárias e tendo em conta a necessidade de facilitar o empreendedorismo, o Governo brasileiro (na esfera federal) lançou mão de uma medida provisória (instrumento constitucional que permite ao Poder Executivo legislar em situações urgentes)[1] para solucionar algumas inconsistências existentes no ordenamento societário, atualmente inserido no livro do direito de empresa do Código Civil (de 2002) e em leis especiais (sociedades por ações e cooperativas).

A tal medida provisória[2] recebeu a alcunha de MP da Liberdade Econômica (“MPLE”), pois, entre outras coisas, pretende traçar limites à conduta da administração pública no relacionamento com o particular. Importante mencionar, ainda, que a MPLE foi recepcionada pela Câmara dos Deputados por meio do Projeto de Lei de Conversão nº 17/2019 (“PLC”), o qual tem por objetivo apreciar o seu conteúdo e convertê-la em lei no prazo de 120 dias (60 dias prorrogáveis por igual período), sob pena de perder a sua eficácia[3]. Este PLC tramitou pela Câmara dos Deputados, depois pelo Senado Federal Congresso Nacional e, agora, aguarda sanção presidencial. Portanto, neste artigo, faremos uma análise do texto da MPLE em confronto, quando for o caso, com o texto do PLC aprovado pelo Senado Federal.

No campo do direito privado, entre outras disposições modificativas dos diplomas societários, a primeira – e mais controversa – é a alteração do art. 50 do Código Civil (de 2002)[4], dispositivo central da desconsideração da personalidade jurídica no direito empresarial e associativo[5]. A inovação, justificada pelos abusos cometidos no uso desse instituto de exceção[6], consiste em conceituar, no diploma civil, os elementos caracterizadores do abuso da personalidade, quais sejam, o desvio de finalidadee a confusão patrimonial, tornando-os objetivos e reduzindo o campo da integração jurisprudencial.

O PLC altera a redação do art. 50 do CC 2002 para incluir um novo requisito que vai exigir a apuração do benefício (direto ou indireto) auferido pelo sócio ou administrador com o abuso da personalidade jurídica.

Além da modificação de parte do art. 50, o PLC introduz o art. 49-A para dizer o óbvio: “a pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores”. E mais, seu parágrafo único explica as funções da autonomia patrimonial, que também não necessitariam estar em lei, com o seguinte teor: “A autonomia patrimonial das pessoas jurídicas é um instrumento lícito de alocação e segregação de riscos, estabelecido pela lei com a finalidade de estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação em benefício de todos.” A nosso ver, esta redação tem efeito didático e não jurídico.

No tocante à definição de desvio de finalidade, a MP passou a defini-lo como “a utilização dolosa da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza”. As novidades foram a limitação da desconsideração apenas à conduta dolosa e a exigência de prova da intenção de lesar os credores. No entanto, o texto final aprovado pelo Congresso retirou a qualificação da conduta, admitindo-a também na modalidade culposa, com a seguinte redação: “para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza[7]. Dúvida que deve surgir é sobre a conjugação dos elementos de sua definição: (i) conduta motivada pela intenção de lesar credores; e (ii) prática de atos ilícitos. Isso em virtude do uso de um elemento de ligação: a conjunção “e” na frase. Ou seja, deve-se cumular um ato que tenha a intenção de lesar credores e a prática de atos ilícitos? Outra dúvida: o ato intencional de lesar credores, realizado por meio de negócio jurídico lícito, configuraria desvio de finalidade? A meu ver, a conjunção está equivocada. Até porque não há lógica na conjugação desses dois elementos, vez que a fraude pode se dar tanto pela conduta propositalmente lesiva (deve-se demonstrar, obviamente, o propósito da conduta e o nexo entre esta e o resultado lesivo) como pela prática de um ato ilícito. Porém, neste último, não haveria o “propósito de lesar credores”; bastaria a utilização dolosa ou culposa da pessoa jurídica conjugada com a sua apropriação para a prática de atos ilícitos. Esse equívoco havia sidocorrigido na tramitação do PLC na Câmara dos Deputados, porém a redação final aprovada pelo Senado manteve boa parte do texto original, retirando-lhe apenas a palavra “dolosa” que qualificava a expressão “utilização da pessoa jurídica”.

Já a confusão patrimonial é conceituada pela “ausência de separação de fatoentre os patrimônios” (do sócio e da sociedade, nesta espécie de pessoa jurídica), cuja caracterização depende da comprovação dos seguintes atos ou negócios: (i) cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador, ou vice-versa; (ii) transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto o de valor proporcionalmente insignificante; ou (iii) ato de descumprimento da autonomia patrimonial frente aos seus sócios e administradores e vice-versa. A primeira hipótese esbarra na falta de ressalva ao cumprimento repetitivo, principalmente no caso do administrador, vez que a sociedade pode estar obrigada, por meio de contrato, a honrar certas obrigações do administrador entendidas como benefícios inseridos no pacote de remuneração de executivos. Por exemplo, o pagamento de aluguel de imóveis ou veículos, o pagamento de escola para os filhos, o pagamento de educação executiva, etc. São instrumentos comumente utilizados por empresas para atrair e reter talentos, que podem, em momentos de crise, voltar-se contra os executivos, já que se encaixam tanto no conceito de obrigações como de cumprimento repetitivo. Obviamente que, nestes casos, ausente a conduta dolosa de prejudicar credores, a desconsideração não poderá ser decretada. No entanto, o texto da MPLE/PLC deveria conter uma ressalva para essas obrigações relacionadas diretamente a benefícios contidos em pacotes de remuneração previamente acordados entre o administrador e os órgãos sociais, e aprovados por estes. Ou seja, o administrador não deveria responder com seu patrimônio pessoal, sob a alegação de confusão patrimonial, pelo simples fato de receber um benefício previamente aprovado e acordado, por exemplo, pelo conselho de administração ou, até mesmo, pela reunião ou assembleia de sócios. Por outro lado, os benefícios auto instituídos, sem a aprovação por órgão isento de conflito de interesses, seriam enquadrados na hipótese de confusão patrimonial.

Eram estas as considerações iniciais sobre o tema, as quais podem ser complementadas a depender do texto que vier a ser sancionado pelo Presidente da República. Pretendemos retornar ao tema, em breve, nesse mesmo Portal, com as demais alterações propostas pela MPLE/PLC no campo do direito societário brasileiro e com as atualizações resultantes da sanção presidencial.

[1] CF/88: “Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.”

[2] Medida Provisória nº 881, de 30 de abril de 2019.

[3] CF/88. Art. 62. (…) § 3º As medidas provisórias, ressalvado o disposto nos §§ 11 e 12 perderão eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de sessenta dias, prorrogável, nos termos do § 7º, uma vez por igual período, devendo o Congresso Nacional disciplinar, por decreto legislativo, as relações jurídicas delas decorrentes.

[4] Redação original (revogada): “Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.”

[5] Diz-se isso, pois, o referido artigo está na parte geral do Código Civil, aplicando-se a todas as pessoas jurídicas de direito privado, elencadas no art. 44 do mesmo diploma, que, por óbvio, tenham adquirido personalidade jurídica a partir do registro (p.ex., não se aplica às sociedades comuns ou em conta de participação, que não possuem personalidade jurídica).

[6] Justifica-se tal alteração com base nos seguintes fundamentos: “A desconsideração da personalidade jurídica está sendo fortemente distorcida no direito brasileiro (…) Chegou ao Brasil, na doutrina, em 1969; e começou a ser adotada pela jurisprudência a partir dos anos 1990. Mas ocorreu uma lamentável distorção: o que deveria ser sempre uma exceção (desconsiderar a personalidade jurídica somente em caso de fraude) está quase virando a regra. (…) No Brasil, é incalculável a quantidade de vezes em que se aplicou a teoria da desconsideração da personalidade jurídica. (…) Quais foram as causas da distorção, no Brasil, da teoria da desconsideração da personalidade jurídica? Foram duas: uma má compreensão da formulação objetiva dessa teoria e a confusão conceitual com outras formas de ineficácia da autonomia patrimonial.”

(ver texto completo no Parecer (CN) nº 1, de 2019, da Comissão Mista da MP nº 881. Disponível aqui. Acesso em 07/08/2019).

[7] Vide tabela comparativa divulgada pelo Senado Federal em seu sítio eletrônico, aqui.

 

Artigo publicado em 2 de Setembro e editado em 9 de Setembro, após avanço do projecto no Congresso, aguarda agora sanção presidencial.