O acórdão Centrose a produção jurisprudencial do TJUE
- No passado dia 9 de março, assinalou-se o vigésimo aniversário do acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça da União Europeia no caso Centros[1], que inaugurou uma linha de produção jurisprudencial que resultou numa alteração significativa do paradigma da mobilidade societária entre Estados-Membros da União Europeia, facilitando-a de forma gradual. Tal corrente jurisprudencial levantou várias questões – jurídicas e de policy– relativas à difícil convivência, na União Europeia, de elementos de conexão distintos para a determinação do direito aplicável às relações internas da sociedade e, consequentemente, às competências e configuração dos seus órgãos de administração – se o critério da sede estatutária ou se o critério da sede efetiva[2] e dos perigos da concorrência regulatória entre os direitos societários dos Estados-Membros.
- Com efeito, o acórdão Centrosreconheceu que das disposições do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (“TFUE”) relativas à liberdade de estabelecimento (artigos 49.º a 54.º) resulta um princípio geral de reconhecimento mútuo de sociedades regularmente constituídas nos Estados-Membros da União Europeia, tendo referido que qualquer sociedade validamente constituída num Estado-Membro de acordo com o seu direito goza de liberdade de “estabelecimento secundário” noutro Estado-Membro, podendo lá exercer atividade económica e estabelecer sucursais sem necessidade de exercer uma atividade económica efetiva no Estado-Membro de origem.
- Sobre estes alicerces, o Tribunal de Justiça foi construindo a sua jurisprudência subsequente sobre liberdade de estabelecimento e mobilidade societária. Nos acórdãosÜberseerring[3] (2002) e Inspire Art[4] (2003),o Tribunal de Justiça veio dizer que o Direito da União Europeia nega aos Estados-Membros a possibilidade de restringirem a “imigração” de sociedades, i.e., o Estado-Membro de acolhimento não pode condicionar injustificadamente a atividade de uma sociedade comercial validamente constituída noutro Estado-Membro no seu território, tendo de reconhecer a sua personalidade jurídica e de a tratar como uma sociedade do direito do Estado onde foi constituída, aplicando-se as normas do Estado de origem no que diz respeito às suas relações internas, incluindo as normas relativas aos órgãos de administração e fiscalização.
- A “emigração” de sociedades foi historicamente mais difícil em virtude da possibilidade de os Estados-Membros imporem restrições à transferência de sede de sociedades constituídas sob o seu direito e à alteração de direito aplicável, reconhecida pelo TJUE no acórdão Daily Mail[5] (1988), e reiterada (com caveatsnos obter dicta) no acórdão Cartesio[6] (2008), também não tendo sido expressamente rejeitada no acórdão VALE[7] (2012). No entanto, no acórdão proferido no caso Polbud [8] (2017), o Tribunal inverteu a sua relutância e completou o puzzle da mobilidade societária, ao determinar que o Estado-Membro onde uma sociedade comercial foi validamente constituída não pode impor restrições “à saída” – in casuliquidação forçada – se tal sociedade tiver alterado a sua sede estatutária para outro Estado-Membro, não tendo referido a possibilidade de imposição de qualquer requisito de exercício de atividade económica genuína ou significativa no Estado-Membro de acolhimento.
- Assim, 18 anos depois do acórdão Centros, e na ausência de qualquer intervenção do legislador europeu, o TJUE parece ter completado a sua jurisprudência sobre mobilidade societária em todas as suas dimensões, afirmando inequivocamente que qualquer sociedade comercial validamente constituída num Estado-Membro da União Europeia pode livremente transferir a sua sede para o território de outro Estado-Membro.
Mais vale tarde do que nunca: o longo caminho até à proposta da Comissão de 2018
- Apesar da atividade jurisprudencial referida supra, a livre circulação de sociedades no espaço europeu e a consequente livre alteração de lei pessoal – apesar de possível – está longe de ser um procedimento previsível e fácil, principalmente porque não existe qualquer procedimento harmonizado, e as sociedades que o desejem fazer continuam sujeitas à discricionariedade dos Estados-Membros. A título de exemplo, um relatório elaborado pela Deloitte em 2017[9], a propósito das opções que, no contexto pós-Brexit, sociedades constituídas e regidas pelo direito inglês dispunham para se relocalizar na Alemanha, identificou a “grande incerteza” da transferência de sede e de direito aplicável como um obstáculo à sua atratividade.
- Ora, esta “liberdade de circulação” de sociedades, tendo sido gradualmente construída pela atividade pretoriana do Tribunal, há muito que reclama por um regime harmonizado ou uniforme de livre transferência de sede dentro do espaço europeu, em ordem a assegurar a necessária previsibilidade e segurança jurídica.
- Entre 1993 e 2016, a Comissão e o Parlamento Europeu falaram entre si, publicaram estudos e recomendações e conduziram consultas públicas sobre uma possível Diretiva sobre transferências de sede transfronteiriças, tendo tal ideia recebido a designação informal de “14ª Diretiva de Direito das Sociedades”, mas as interações institucionais parecem ter acabado sempre em deadlockpolítico, sem nunca ganhar tração.
- Em 2016, a Comissão publicou um estudo[10] sobre a lei pessoal aplicável às sociedades comerciais, procurando abordar os temas relativos à mobilidade societária causada pela falta de harmonização das normas de conflitos relevantes, tendo recomendado a adoção de um Regulamento – informalmente apelidado de “Roma V” – que, à semelhança dos restantes Regulamentos da União Europeia em matéria de direito internacional privado, adotasse um corpo normativo uniforme de normas de conflitos com base no critério da constituição. Em paralelo à adoção de tal Regulamento, foi também sugerida a adoção de uma Diretiva que harmonizasse as normas nacionais relativas à transferência de sede e de direito aplicável, facilitando a reconstituição de uma sociedade validamente constituída num Estado-Membro no território de outro e a proteção dos stakeholdersrelevantes, tais como credores, sócios minoritários e trabalhadores.
- Face à incerteza trazida pelo Brexite na sequência do acórdão Polbud, a Comissão acabou por, a 25 de abril de 2018, apresentar uma proposta de Diretiva que alterará a Diretiva (UE) 2017/1132 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de junho de 2017, relativa a determinados aspetos de direitos das sociedades (também conhecida como Diretiva Codificadora, por ter substituído muitas das antigas Diretivas de Direito das Sociedades) na parte respeitante às transformações, fusões e cisões transfronteiriças[11], proposta entretanto analisada pelo Conselho e pelo Parlamento Europeu, que a 22 de março de 2019 apresentaram um texto revisto (as referências a “Proposta” referem-se à versão revista)[12].
- A Comissão reconheceu que, sem prejuízo da proteção dada pelo TFEU, a falta de um procedimento harmonizado continuava a constituir uma barreira à mobilidade societária, com impacto mais gravoso em PMEs. A Proposta terá um duplo propósito – fomentar a mobilidade societária transfronteiriça através da criação de um procedimento claro e simultaneamente, proteger os diferentes stakeholders
- A Proposta acaba por enquadrar a transferência de sede como uma transformação transfronteiriça, em claro lugar paralelo com os regimes internos de transformação de tipos sociais que existem nos vários Estados-Membros.
- Prevê-se o estabelecimento de um processo estruturado e a vários níveis que garanta um controlo da legalidade da operação através da validação das autoridades dos Estados-Membros envolvidos, com uma estrutura semelhante à das fusões (internas e transfronteiriças) e que, tal como estas, envolva a produção e apresentação de um projeto e a publicação de um relatório, estabelecendo-se um prazo de um mês entre a sua publicação e a aprovação em assembleia geral. A diferença mais fundamental com o procedimento da fusão transfronteiriça parece residir no papel mais interventivo que as autoridades relevantes do Estado-Membro de origem terão no controlo da legalidade da operação, papel que foi criticado pela margem de discricionariedade eventualmente excessiva que deixa às autoridades[13].
- Uma das grandes preocupações da Proposta é a proteção dos stakeholders– sócios minoritários, credores e trabalhadores. Os sócios minoritários que votem contra a transformação na assembleia geral poderão vender as suas participações sociais em contrapartida de uma adequada compensação pecuniária. Os credores verão um regime de proteção semelhante ao de uma fusão. Os trabalhadores encontrar-se-ão protegidos pelos direitos de informação e consulta gerais previstos nos vários regimes de transmissão de estabelecimento e, caso vigore um sistema de participação dos trabalhadores, pela garantia que, após a transformação, se mantém o regime do Estado de origem quando for mais favorável – uma preocupação que havia sido repetidamente suscitada por Estados-Membros que contam com regimes de participação dos trabalhadores nos Conselhos de Supervisão de algumas sociedades, como a Alemanha. Adicionalmente, sociedades em fases posteriores de liquidação, instituições de crédito e empresas de investimento sujeitas a poderes de resolução bancária e, caso os Estados-Membros assim o entendam, sociedades objeto de declaração de insolvência, estarão excluídas do âmbito de aplicação da Diretiva.
A omissão (propositada?) da definição de um elemento de conexão uniforme
- Um fator que dificultou sempre chegar-se a algum tipo de consenso em ordem a possibilitar a aprovação de um regime como o proposto na Diretiva foi a difícil convivência entre os elementos de conexão para determinação da lei pessoal da sociedade e, consequentemente, das normas aplicáveis à composição e divisão de competências dos seus órgãos de administração – havendo ordenamentos que utilizam o critério da sede estatutária[14] e outros que utilizam o critério da sede efetiva[15].
- Apesar de a Comissão, em 2016, ter alertado para a necessidade da adoção de um elemento de conexão uniforme para determinação da lei pessoal das sociedades comerciais, a Diretiva parece abster-se de o fazer. Parece-me que tal omissão – eventualmente propositada – tem razões de vária ordem: (i)uma Diretiva não é a sede normativa indicada para prever normas de uniformização, mas sim os Regulamentos (pense-se no Regulamento Bruxelas I ou Roma I); (ii) tal como referido na Proposta, o artigo 54.º do TFUE põe os vários elementos de conexão – sede estatutária, sede da administração ou estabelecimento principal – em pé de igualdade, não privilegiando nenhum em detrimento de outro e não dando uma base legal firme para a exclusão expressa dos restantes elementos de conexão; e (iii) a ideia segundo a qual a Diretiva, ao prever um regime harmonizado de transformações transfronteiriças, acabará por encorajar que as sociedades que se queiram submeter a uma transformação transfronteiriça o façam com a transferência simultânea da sede estatutária e da sede efetiva.
- É curioso enfatizar que a definição de “transformação transfronteiriça” da Proposta refere que a transformação num tipo societário de outro Estado-Membro implica a transferência de pelo menosa sede estatutária, não exigindo a transferência da sede efetiva, o que parece discretamente abrir a porta ao império material (mas não formal) do critério da sede estatutária onde ele tem mais implicações práticas – na transferência de sede ou, na futura terminologia, transformação transfronteiriça de sociedades. Tal definição pode ainda ser revista, mas é um indicador interessante.
Conclusão: concorrência regulatória e jurisdiction shopping na Europa?
- 20 anos depois, parece que o legislador europeu aceitou o repto lançado pelos juízes no Luxemburgo e concretizará, de forma plena e equilibrada, a liberdade de estabelecimento, usando estruturas procedimentais já testadas como base e dando aos administradores e sócios das sociedades comerciais constituídas na União Europeia um instrumento adicional de reestruturação.
- No entanto, as medidas de proteção dos stakeholdersnão parecem prima facieadequadas nem têm a intenção aberta de mitigar um fenómeno que muitos temem – um efeito Delaware europeu – ou seja, uma corrida entre os vários Estados-Membros para adaptar as suas normas de direito societário – nomeadamente as aplicáveis ao governo das sociedades – a um novo ambiente de livre circulação. Tal movimento, segundo os seus críticos, pode atrair as sociedades a usarem a transformação transfronteiriça para se relocalizarem Estados-Membros com um menor número de normas injuntivas ou com padrões de corporate governance inferiores – a chamada race to the bottom.
- Por outro lado, pode-se olhar para a concorrência regulatória como uma race to the top– com a liberdade de escolha de jurisdição a poder servir de incentivo aos Estados-Membros para aumentarem os padrões dos seus regimes societários e, eventualmente, de forma inadvertida, alinhá-los entre si pelo máximo denominador comum.
- Além disso, sempre se dirá que não será a mobilidade mais facilitada de sociedades comerciais na União Europeia que vai espoletar a concorrência regulatória. Ela já existe, muitas sociedades utilizando estruturas de grupos transnacionais com esse propósito.
[1]Acórdão do Tribunal de Justiça de 9 de março de 1999, Centros Ltd / Erhvervs- og Selskabsstyrelsen, Proc. n.º C-212/97.
[2]Vide, para uma introdução, Rui de Moura Ramos, “O Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias e a teoria geral do direito internacional privado. Desenvolvimentos recentes.”, em Estudos em Homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Collaço(org. Rui de Moura Ramos), II, Almedina, Coimbra (2002), 431-467; Dário Moura Vicente, “Liberdade de estabelecimento, lei pessoal e reconhecimento das sociedades comerciais” em Direito Internacional Privado – Ensaios, II, Almedina, Coimbra (2005); Luís de Lima Pinheiro, “O direito de conflitos e as liberdades comunitárias de estabelecimento e de prestação de serviços” em Estudos em Memória do Professor Doutor António Marques dos Santos (org. Jorge Miranda, Luís de Lima Pinheiro e Dário Moura Vicente), I, Almedina, Coimbra (2005), 273-303; e, em inglês, António Garcia Rolo, “Completing the Freedom of Establishment – the Case for a New Company Law Directive on Companies’ Seat Transfers” em Revista de Direito das Sociedades VII 2 (2016), 359-401.
[3]Acórdão do Tribunal de Justiça de 5 de novembro de 2002, Überseering BV v Nordic Construction Company Baumanagement GmbH, Proc. n.º C-208/00.
[4]Acórdão do Tribunal de Justiça de 30 de setembro de 2003, Kamer van Koophandel en Fabrieken voor Amsterdam v Inspire Art Ltd, Proc. n.º C-167/01.
[5]Acórdão do Tribunal de Justiça de 27 de setembro de 1988, The Queen v H. M. Treasury and Commissioners of Inland Revenue, ex parte Daily Mail and General Trust plc, Proc. n.º C-81/87.
[6]Acórdão do Tribunal de Justiça de 16 de dezembro de 2008, CARTESIO Oktató és Szolgáltató bt, Proc. n.º C-210/06.
[7]Acórdão do Tribunal de Justiça de 12 de julho de 2012, VALE Építési kft, Proc. n.º C-378/10
[8]Acórdão do Tribunal de Justiça de 25 de outubro de 2017, Polbud – Wykonawstwo sp. z o.o., Proc. n.º C-106/16.
[9]Andreas Jentgens e Klaus Gresband (Deloitte Legal), Ahead of Brexit: A corporate law primer on relocating your business to Germany(Novembro de 2017), disponível aqui.
[10]Edmund-Philipp Schuster/Carsten Gerner-Beuerle/Mathias Siems/Federico Mucciarelli (Direção Geral para a Justiça e Proteção de Consumidores da Comissão Europeia), Study on the law applicable by companies (2016) disponível aqui.
[11]Proposta da Comissão Europeia, de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho que altera a Diretiva (UE) 2017/1132 na parte respeitante às transformações, fusões e cisões transfronteiriças, COM(2018) 241 final (25.04.2018), disponível aqui. Vide, para uma análise mais densificada das novidades da Proposta, Manuel Rodrigues Leal, “Breve Resenha (e Apreciação Crítica) da Proposta da Comissão Europeia Para uma Diretiva da Mobilidade Transfronteiriça das Sociedades”, em Actualidad Juridica Uría Menendez 51 (2019), 125-132.
[12]Conselho da União Europeia, Proposal for a Directive of the European Parliament and of the Council amending Directive (EU) 2017/1132 as regards cross-border covnersions, mergers and divisions, IF 2018/0114(COD) (22.03.2019), disponível aqui.
[13]Vide Segismundo Alvarez, The Cross Border Operatiosn Directive: Wider Scope but More Restrictions, European Law Blog (10.07.2019), disponível aqui.
[14]Nos ordenamentos jurídicos que utilizam o critério da sede estatutária ou da constituição (Reino Unido ou Países-Baixos, p.ex.) a lei pessoal da sociedade é determinado pelo local onde foi constituída – que corresponderá quase sempre à sua sede estatutária. É um critério subjetivoe de caráter mais contratual, em claro paralelismo com a escolha do direito aplicável noutro tipo contratual.
[15]Nos ordenamentos jurídicos que preferem o emprego do critério da sede efetiva ou (França ou Alemanha, p.ex.), a lei pessoal da sociedade é determinada consoante o Estado onde se encontre a sede da administração, i.e., onde o conselho de administração se reúne ou onde se concentrem mais órgãos de administração e de direção. É um critério objetivo, para o qual a vontade das partes é irrelevante.