Política de auditoria: as lições da crise

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A Comissão Europeia publicou no passado dia 13 de Outubro de 2010 um Livro Verde intitulado “Política de auditoria: as lições da crise”, voltando a colocar em discussão pública temas já anteriormente polemizados e que têm sido amplamente discutidos nos últimos dez anos, no pós-Enron.

Traçando no texto objectivos ambiciosos, a Comissão Europeia pretende que se discutam, entre outros, o papel dos auditores, a governação e a independência das firmas de auditoria, a supervisão dos auditores, a criação de um mercado único para a prestação de serviços de auditoria e a cooperação internacional para a supervisão das redes de auditoria internacionais.

Focando no governo e independência das sociedades de auditoria apenas três breves notas.

Nomeação dos auditores

O reconhecimento de que o actual sistema de nomeação dos auditores pelas sociedades enferma de um pecado original que cria uma distorção no sistema, atento o facto de os auditores serem nomeados e pagos pela sociedades que auditam, não pode deixar de ser visto como um acto corajoso por parte da Comissão. Na discussão das alternativas, a Comissão propõe-se realizar um estudo de viabilidade de um sistema de nomeação, remuneração e definição da duração do mandato dos auditores por um terceiro, designadamente, por uma entidade reguladora ou de supervisão.

A discussão não é nova e na sua teorização o sistema que será objecto de estudo gera simpatias espontâneas, designadamente, por contribuir, de forma quase automática, para um olhar desinteressado da sociedade de auditoria para a sociedade comercial que vai auditar. Parece-me, porém, que o acento tónico não deve ser colocado na teórica independência asséptica que se espera conseguir com a possível medida, mas antes no facto de a mesma ferir a soberania accionista nas sociedades comerciais.

Por princípio, as intervenções regulatórias devem cingir-se ao mínimo indispensável para garantir o correcto funcionamento dos mercados ou a correcção de graves distorções nos mesmos, não devendo atingir o âmago da privaticidade das empresas, por ser esta o corolário da existência do próprio mercado. Neste caso em particular, a inexistência de provas de que a liberdade de escolha do auditor pelos accionistas afecte à nascença de forma inelutável a sua independência, deverão desaconselhar a adopção de uma medida no sentido proposto estudar.

Rotação obrigatória dos auditores

Numa outra frente e com bases mais sólidas, a Comissão entende que a manutenção de uma mesma sociedade de auditoria durante décadas se afigura incompatível com as normas de independência desejáveis. Termos em que se propõe considerar a obrigatoriedade de rotação das firmas de auditoria em conjugação com a já existente rotação dos sócios de auditoria (evitando, assim, a transição de sócios-auditores entre sociedades de auditoras).

Em Portugal a discussão iniciou-se em Janeiro de 2010 quando a CMVM fez incluir uma recomendação de rotação dos auditores a cada 8 ou 9 anos (consoante os mandatos fossem de 4 ou de 3 anos, respectivamente) na sua última versão do Código de Governo das Sociedades.

Neste âmbito, não sendo pacífica a discussão, parece-me que a Comissão Europeia pisa solo mais firme. Na verdade, apresenta-se de difícil sustentação que, ao fim de mais de uma dezena de anos de trabalho com a mesma sociedade comercial, a sociedade de auditoria mantenha o mesmo imaculado nível de cepticismo com que iniciou o acompanhamento à sociedade comercial (mesmo que racionalmente disso não se aperceba).

Nessa medida, parece-me que a rotação obrigatória pode ser uma medida interessante para o restabelecimento da confiança dos mercados, desde que seja efectuada com respeito por prazos adequados, que não onerem financeiramente a sociedade auditada de forma desproporcional e que me parece que poderão ser ligeiramente mais dilatados do que recomenda a CMVM.

Serviços de não-auditoria

A Comissão pretende estudar a possibilidade de reforçar a proibição de prestação de serviços distintos da auditoria por sociedades de auditoria, no que poderá resultar na imposição de “firmas de auditoria pura”.

É talvez dos três o tema que menos consensos gera, sendo ampla a discussão entre doutrinários da completa separação de funções como principal salvaguarda da independência do auditor e os autores que advogam que a prestação de serviços relacionados com a auditoria permitem, com benefícios para a realização das auditorias, um mais célere e adequado conhecimento da sociedade auditada.

Penso que a solução deveria passar pela consagração de uma média via que, não ofendendo o princípio da privaticidade das empresas, impusesse rigorosos tectos de facturação para os serviços de não auditoria, impedindo que as sociedades de auditoria desfocassem do essencial da sua actuação (em parte, à semelhança do já definido pela CMVM no Código de Governo das Sociedades publicado em Janeiro de 2010).