Primeiras impressões sobre o Projeto de Código de Governo das Sociedades do IPCG

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 1. Os códigos de governo das sociedades e a iniciativa do IPCG

Consubstanciando os códigos de governo das sociedades normas de natureza recomendatória, providas de sanções no mercado, mas não de sanções jurídicas diretas, que «desempenham um papel influente na condução dos destinos das sociedades abertas e na motivação pessoal dos titulares dos órgãos sociais e de acionistas na tomada de decisões ligadas à condução da actividade societária»[i], devem ter-se sempre presentes, na sua elaboração, as limitações do mercado subjacente — e, em particular, a capacidade deste para distinguir e valorizar os “bons” agentes económicos face aos “limões”[ii] — e a eficiência das normas jurídicas que constituem as fundações sobre a qual assenta a sua construção.

Neste sentido, é interessante sublinhar a reação de duas eminentes figuras do nosso mercado na apresentação de duas compilações de estudos sobre governo das sociedades nas quais participámos. Em 2010, o Dr. Artur Santos Silva debruçou-se em particular sobre o reflexo da ineficiência dos nossos tribunais no governo das sociedades; em 2012, o Senhor Alexandre Soares dos Santos manifestou particular preocupação perante a concentração da reflexão em normas sem sanção jurídica, por entender que, enquanto assim fosse, por mais que se escrevesse sobre o assunto, tudo ficaria na mesma.

É importante também recordar que um dos factores que mais determinou o sucesso dos códigos de governo das sociedades no Reino Unido se prendeu com a “ameaça” de intervenção legislativa, sempre presente. Tanto os redatores dos diferentes relatórios subjacentes a este movimento, como as instituições representativas das diferentes sensibilidades do mercado, como os próprios destinatários das recomendações apresentadas, sempre tiveram consciência de que, se não se verificassem melhorias significativas no governo das sociedades, o Governo interviria diretamente pela via legislativa. Entre nós, pelo contrário, parece haver um completo alheamento dos sucessivos Governos face ao governo das sociedades. A exceção foi a reforma de 2006, decorrente de uma iniciativa isolada da CMVM e não de um processo próprio de reforma, ponderada e maturada por uma ampla discussão pela comunidade científica e pelos agentes no mercado, como se exigia e verifica em determinados ordenamentos de referência.

Por tudo isto, arriscamos dizer que, sem prejuízo do indiscutível mérito desta iniciativa, mais importante do que desenvolver um código alternativo ao da CMVM, melhor seria a promoção, pelo IPCG, de um debate construtivo e sério sobre as reformas que se impõem nesta área, não só ao nível da law in the books, mas sobretudo ao nível da law in action.

2. Da estrutura e composição dos órgãos sociais à densificação das responsabilidades dos seus membros

Desde o Relatório Cadbury (1992), os códigos de governo das sociedades centram-se essencialmente na estrutura e composição dos órgãos sociais, não deixando contudo de procurar clarificar as responsabilidades dos órgãos sociais:

«Bringing greater clarity to the respective responsibilities of directors, shareholders and auditors will also strengthen trust in the corporate system»[iii].

Infelizmente, o debate e as propostas sobre o governo das sociedades são mais frequentemente centrados na estrutura e composição dos órgãos sociais do que na clarificação das suas responsabilidades. A justificação parece residir no facto de os estudos empíricos sobre a matéria se poderem centrar apenas sobre informação pública, sendo certo que da informação divulgada pelas sociedades se podem retirar conclusões apenas quanto à estrutura e composição dos órgãos sociais e não quanto à forma como estes desenvolvem as suas funções e cumprem os seus deveres. Salvo raras exceções, só perante casos patológicos se fica a conhecer o modus operandi de cada um dos órgãos sociais. Entre nós, dada a ausência de jurisprudência sobre esta matéria, só perante casos que, pela sua gravidade, ascendem à categoria de escândalos societários e financeiros, essa informação chega ao conhecimento público.

Perante a insuficiência deste modelo, várias vozes têm afirmado a necessidade de recentrar o debate na conduta devida pelos órgãos sociais — e não simplesmente na sua estrutura e composição — no sentido de promover a sua maior “responsabilização” (accountability)[iv].

De facto, ao longo das últimas décadas, multiplicaram-se os casos em que órgãos sociais estruturados e compostos segundo soluções state of the art incumpriram os mais básicos dos seus deveres. Neste sentido, há não muito tempo, o Relatório de Larosière (2009) concluiu que o governo das instituições financeiras não foi, per se, uma das principais causas da crise financeira de 2007-2009. Porém, um adequado governo daquelas instituições teria permitido mitigar os piores efeitos desta crise. Sabe-se hoje que, em muitos casos, os conselhos de administração e os altos dirigentes das instituições financeiras simplesmente não compreendiam as características dos novos e altamente complexos produtos financeiros que negociavam e não tinham conhecimento da exposição global das suas sociedades, tendo por isso subestimado, em grande medida, o risco que as mesmas corriam. Prevaleceu frequentemente o “instinto de manada”, numa corrida desenfreada pelo aumento de lucros, sem adequada ponderação dos riscos subjacentes. Os conselhos de administração não exerceram o devido controlo e vigilância sobre a sociedade; os administradores não executivos estiveram “ausentes” ou foram incapazes de desafiar os executivos. A inadequada estrutura de remuneração dos administradores e traders conduziu à excessiva assunção de riscos e perspectivação de curto prazo.

Face a esta situação, a Comissão Europeia manifestou a necessidade de fortalecer significativamente e aplicar devidamente (duly apply and enforce) o atual sistema de pesos e contramedidas, de forma a que todos os envolvidos tenham maior consciência da sua responsabilidade (accountability and liability), sem minar o espírito de empreendedorismo necessário ao crescimento económico[v].

Pelo exposto, parece-me que, mais importante do que assegurar o cumprimento formal de alguns requisitos de estruturação e composição dos órgãos sociais seria: (i) compreender quem e como avalia o cumprimento desses requisitos e (ii) qual a conduta exigível ou recomendada aos membros de cada órgão social.

3. Análise do Projeto do IPCG

Capítulo I

a)          O ponto I.2.1, relativo ao funcionamento dos órgãos da sociedade, nos termos do qual estes devem dispor de regulamentos internos, nomeadamente sobre o exercício das respectivas atribuições, presidência, periodicidade de reuniões, funcionamento e quadro de deveres dos seus membros (p. 6-7), vai de encontro às preocupações manifestadas em cima, mas parece-nos ser insuficiente. Seria importante densificar a dimensão procedimental dos deveres imputados a cada tipo de órgão social, com vista à conformação da conduta dos destinatários segundo as “melhores práticas”.

b)         Sobre o ponto I.2.4, nos termos do qual os regulamentos devem prever a existência e promover o funcionamento de mecanismos de detenção e prevenção de irregularidades (p. 7), remetemos para a apreciação crítica de Diogo Costa Gonçalves que subscrevemos na íntegra.

c)          No ponto I.3, para além de subscrevermos a análise de Bruno Ferreira, acrescentaríamos poder ser melhorada a redação do princípio enunciado, no sentido de clarificar que o dever de criar as condições para que, na medida das responsabilidades de cada órgão, seja assegurada a tomada de medidas ponderadas e eficientes, recai não apenas sobre os administradores, mas também a cada um dos demais órgãos sociais e a cada um dos seus membros.

d)         O ponto I.3.1 é essencial, porquanto a constituição (e manutenção) de adequados fluxos de informação é um dos factores mais importantes para o adequado desenvolvimento das funções pelos diferentes órgãos. Parece-nos, no entanto, que os exemplos apresentados têm um efeito contraproducente, na medida em que parecem restringir o acesso dos membros dos órgãos sociais àqueles elementos que, sendo tão básicos, obviamente não poderiam nunca ser postos em causa. Impor-se-ia aqui explicar se e em que medida cada membro (individualmente considerado) de cada órgão social pode — e deve — aceder aos registos e documentos, bem como inquirir os colaboradores da sociedade, que entender necessários ou convenientes para confirmação e desenvolvimento da informação que lhe tiver sido prestada. A atual redação parece restringir e não densificar as normas legais sobre esta matéria.

A redação do princípio subjacente ao ponto I.4 e a recomendação do ponto I.4.2 pode ser melhorada. Por um lado, a “não participação do membro em conflito no processo de decisão” confunde mais do que esclarece. Se diz respeito ao impedimento de voto, nada acrescenta face ao que resulta da lei. Se, pretendendo ir mais longe, visa impedir a participação do membro em conflito na discussão, forçando à sua saída da sala após exposição do seu conflito, nos termos que em tempos sustentámos[vi], então deveria ser mais claro nesse sentido.

e)          Por outro lado, o ponto I.4 ignora aquele que é, tipicamente, o principal conflito de interesses entre nós: o conflito de interesses entre o acionista controlador e a sociedade (em prejuízo, sobretudo, dos demais acionistas). Não há sequer uma referência aos conflitos de interesses dos administradores quando estes atuam como extensão dos acionistas de referência que determinaram a sua designação. Parece-nos que este é um ponto que merece ser revisto, de forma a cobrir os principais conflitos de interesses e a desenvolver os procedimentos adequados ao seu tratamento pelos diferentes órgãos sociais.

Capítulo II

f)          Quanto ao Capítulo II, considerando que o estímulo à participação pessoal dos acionistas nas assembleias gerais é dirigido aos pequenos e médios acionistas — dado que os grandes acionistas têm, na prática, acesso direto a fóruns mais restritos de discussão com os órgãos sociais — seria interessante densificar os deveres de informação dos órgãos sociais em assembleia geral, assegurando que as questões colocadas pelos acionistas em assembleia têm resposta efetiva, com conteúdo substancial (e não meramente formal), o que nem sempre se verifica na prática.

Capítulo III

g)          Relativamente ao ponto III.3, diríamos que mais importante do que assegurar o envio das atas aos órgãos de administração e fiscalização é saber qual será o seu conteúdo, para que tenham alguma relevância prática.

Capítulo IV

h)         Finalmente, o Capítulo IV, com título “Supervisão e Fiscalização”, é provavelmente aquele em que a concentração sobre aspectos de estrutura e composição, com concomitante desapreço pela densificação das responsabilidades dos membros dos órgãos sociais é mais flagrante, não sendo feita qualquer referência à conduta devida pelos fiscalizadores. Cremos que esta lacuna não é adequadamente colmatada nas demais recomendações do código.

i)           A propósito do ponto IV. 3, refira-se ainda que mais importante do que recomendar a inclusão de um número adequado de administradores não executivos que cumpram os requisitos legais de independência, seria determinar quem e como avalia a “independência” dos membros independentes dos órgãos sociais, de forma a assegurar, tanto quanto possível, uma efetiva — e não meramente formal — independência dos mesmos.

Capítulo V

j)           Ao longo dos pontos V.1 a V.3 não se encontra qualquer referência à relação entre a remuneração e a responsabilização dos membros dos órgãos sociais. O estabelecimento de uma tal relação seria especialmente relevante nos casos em se determina a posteriori ter sido incorreta a avaliação do desempenho que serviu de base à remuneração.

Capítulo VI

k)         No ponto VI não existe qualquer referência sobre o papel dos órgãos fiscalizadores na supervisão do sistema de gestão de riscos, nem sobre a análise crítica conjunta do mesmo pelos órgãos de administração e fiscalização, merecendo por isso uma revisão.

Capítulo VII

l)           No ponto VII.1.2(ii), deveria constar a apreciação do cumprimento das recomendações e conclusões não só da auditoria interna e externa, mas também, e sobretudo, do próprio órgão de fiscalização.

m)        Ao longo de todo o ponto VII.2, as referências ao auditor externo deveriam ser articuladas com referências ao revisor oficial de contas (que poderá não coincidir com o auditor externo).

n)         Finalmente, no ponto VII.2.4, deveria exigir-se a ponderação, por um lado, da remuneração das sociedades de revisores oficiais de contas e, por outro, da remuneração do sócio desta responsável pela auditoria, dado que a remuneração deste é frequentemente fonte de maiores preocupações do que a da sociedade em si.

o)         Ainda quanto a este capítulo, não podemos concordar com a análise de António Fernandes Oliveira[vii]. Parece-nos que os deveres previstos neste Capítulo não vão para além da competência normativamente prevista no CSC para a fiscalização da administração (cfr. arts. 420.º, n.º 1, a) para o conselho fiscal, 423.º-F, n.º 1, a) para a comissão de auditoria e 441.º, n.º 1, d) para o conselho geral e de supervisão). Parece-nos que a interpretação restritiva desta competência e dos meios que dela resultam — nos termos aparentemente propostos por António Fernandes Oliveira — não tem fundamento sistemático.

3. Conclusão

Numa primeira apreciação geral, diríamos que, sem prejuízo das recomendações sobre a estrutura e composição dos órgãos sociais, este Projeto de Código beneficiaria de um desenvolvimento das condutas devidas por ou recomendadas a cada órgão social — e aos seus membros individualmente considerados — no sentido de conformar a atuação dos diferentes agentes de acordo com “as melhores práticas” de governo das sociedades, e assim alcançar um maior grau de “responsabilização” dos mesmos.

 

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[i] Cfr. Paulo Câmara – “Introdução: os Códigos de Governo das Sociedades”, in Câmara (ed.) – Código de Governo das Sociedades Anotado, Coimbra: Almedina, 2012, p. 12-13, n.º 1.
[ii] Cfr. George A. Akerlof – The market for “lemons”: Quality uncertainty and the market mechanism, The Quarterly Journal of Economics, 84:3, 1970.
[iii] Committee on the Financial Aspects of Corporate Governance – “Report on the Financial Aspects of Corporate Governance”, 1992, p. 11, § 1.6.
[iv] Assim, por exemplo, para Roberts, Mcnulty e Stiles, a estrutura, a composição e a independência condicionam a eficácia do conselho de administração, mas o que verdadeiramente determina essa eficácia é a conduta dos administradores não executivos face aos executivos. John Roberts, Terry McNulty e Philip Stiles – Beyond Agency Conceptions of the Work of the Non-Executive Director: Creating Accountability in the Boardroom, British Journal of Management, 16, 2005.

Bhagat e Black, por seu turno, afirmam que a composição do conselho por administradores independentes pode não ser tão importante como frequentemente sustentado, propondo que (i) sobre aqueles que sugerem uma cada vez maior independência do conselho de administração deve recair o ónus da prova da produtividade das soluções defendidas (não podendo ser criticadas, sem mais, as sociedades que procuram composições do conselho adequadas às suas específicas circunstâncias), (ii) devem ser considerados outros critérios para, em conjugação com a independência, aferir o desempenho do conselho, (iii) devem ser reforçados os procedimentos que facilitam a vigilância (como reuniões específicas de administradores não executivos), (iv) que existem mecanismos alternativos para controlar os custos de agência nas grandes sociedades que, no caso concreto, podem ser complementos ou sucedâneos dos administradores independentes, e, por fim, (v) que um conselho de administração óptimo compreende administradores executivos e administradores independentes que aportam diferentes aptidões e conhecimentos, podendo a composição largamente maioritária de administradores independentes pôr em causa este equilíbrio. Sanjai Bhagat e Bernard Black – The uncertain relationship between board composition and firm performance, Business Lawyer, 54, 1999.

[v] Comissão Europeia – “Corporate Governance in Financial Institutions: Lessons to be drawn from the current financial crisis, best practices”, 2010, p. 4.
[vi] Cfr. José Ferreira Gomes – “Conflitos de interesses entre accionistas nos negócios celebrados entre a sociedade anónima e o seu accionista controlador”, in Câmara (ed.) – Conflito de Interesses no Direito Societário e Financeiro, Coimbra: Almedina, 2010, p. 66:

«…o administrador interessado deve, nos termos do artigo 410.º, n.º 6 in fine CSC, informar o presidente e, apesar de a letra da lei não o referir, os demais administradores sobre o seu conflito de interesses, na medida do necessário para que estes possam tomar uma decisão informada sobre o seu sentido de voto. Em seguida, deve retirar-se da sala para que os administradores desinteressados possam discutir adequadamente o assunto, tendo em vista apenas os melhores interesses da sociedade. Finda a discussão, o administrador interessado deve estar presente no momento da votação apenas e tão só quando a sua presença seja necessária para assegurar o quórum constitutivo, caso em que não poderá votar nem interferir na votação»

[vii] Segundo a exposição de António Fernandes Oliveira:
«Fixam-se aqui (sob a forma de recomendação) ao órgão de fiscalização algumas (…) obrigações de resultado arrojadas e que vão além das tradicionais funções, legalmente previstas, de fiscalização e vigilância (maxime da regularidade das contas), ou de participação no processo de designação do auditor externo. Como para alcançar resultados são necessários meios, meios estes que no caso se reconduzem necessariamente a poderes capazes de se impor no seu confronto com o órgão de administração, e como se não vê, na ausência de previsão estatutária, onde possam fundar-se esses poderes senão no querer e vontade (alteráveis) desse mesmo órgão de administração, talvez fosse mais equilibrado e realista (e mais alinhado com a especialização natural do órgão de fiscalização e com o destinatário natural da obrigação de garantir tais resultados) tentar uma outra afinação do enfoque, pondo-o na “fiscalização contínua do grau de concretização das responsabilidades do órgão de administração” aqui em causa, e em (o órgão de fiscalização, ainda) “tomar a iniciativa de apontar ou sugerir as medidas em falta” para que seja alcançado o cumprimento das recomendações em causa pelo órgão de administração».