Responsabilidade empresarial e dever de diligência – Da vinculatividade da futura matriz sobre “ESG” (Environmental, social and governance)

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A trilogia “Proteger, Respeitar, Remediar” constitui, hoje, uma referência global. Completa-se, este ano, uma década sobre a aprovação dos “Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos” (PONU), das Nações Unidas, e do “Guia sobre o Dever de Diligência para uma Conduta Responsável das Empresas”, da OCDE. São dois textos fundamentais em matéria de dever de diligência, mas que têm a natureza de regulamentação não vinculativa.

O último trimestre ficou marcado pela Resolução do Parlamento Europeu, de 10 de Março de 2021, sobre o dever de diligência das empresas e a responsabilidade empresarial [P9_TA (2021)0073, acessível aqui. Em anexo à Resolução, encontram-se as “Recomendações para a elaboração de uma Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa ao dever de diligência das empresas e à responsabilidade empresarial”. Pretende-se introduzir um quadro normativo, de âmbito geral e vinculativo, na União Europeia, com o propósito de assegurar a sustentabilidade social, ambiental, e a boa governação das empresas. Visa-se, deste modo, prevenir e atenuar os efeitos negativos potenciais ou reais nos direitos humanos, no ambiente e na boa governação, e assegurar que as empresas possam vir a ser responsabilizadas por esses efeitos prejudiciais (cfr. Considerando n.º 13, e artigo 1.º da Proposta de Directiva).

O perspectivado quadro normativo transcende o modelo de “guidelines, e impõe uma obrigação em sentido técnico-jurídico, isto é, um dever de prestação, de cumprimento necessário. O paradigma do “ESG” deixa, pois, de assentar em “standards” de conduta, previstos em regras que pressupõem a adesão “voluntária” por parte das empresas.

Como se esclarece, pretende-se definir “uma norma europeia em matéria de dever de diligência” e “um modelo mundial para um comportamento responsável das empresas” (cfr. Considerando n.º 13 da Proposta de Directiva). Visa-se, deste modo, a harmonização das legislações a nível da União, para neutralizar o risco de insegurança jurídica e os desequilíbrios na concorrência leal e paritária entre empresas que operam na União Europeia, minimizando os riscos de “dumping social e ambiental”, no comércio internacional (cfr. Considerandos n.º 10 a 13). A existência de uma matriz comum vinculativa oferece, também, vantagens comerciais para as empresas que, ao privilegiarem uma conduta responsável, passam a ser consideradas uma referência no mercado.

Neste sentido, as empresas que operem no mercado interno têm de adoptar medidas e procedimentos efectivos, eficazes e adequados, que permitam prevenir, identificar, avaliar, comunicar, mitigar e resolver os efeitos (reais ou potenciais) prejudiciais nos direitos humanos, no ambiente, e na boa governação das operações e relações empresariais (cfr. Considerando n.º 20, e artigos 1.º e 4.º da Proposta de Directiva).

A importância destas medidas justifica que, no plano da delimitação subjectiva, se proponha a sua aplicabilidade relativamente “às grandes empresas regidas pelo Direito de um Estado-Membro ou estabelecidas no território da União” (cfr. artigo 2.º, n.º 1 da Proposta de Directiva), e quanto “a todas as pequenas e médias empresas cotadas em bolsa, bem como às pequenas e médias empresas de alto risco” (cfr. artigo 2.º, n.º 2 da Proposta de Directiva). Prevê-se, ainda, que a Directiva seja aplicável “às grandes empresas, às pequenas e médias empresas cotadas em bolsa e às pequenas e médias empresas que operem em setores de alto risco, que sejam regidas pelo Direito de um país terceiro e não estejam estabelecidas no território da União, sempre que operem no mercado interno, vendendo bens ou prestando serviços” (cfr. artigo 2.º, n.º 3 da Proposta de Directiva).

O dever de diligência é estabelecido de modo abrangente no que respeita ao seu âmbito de aplicação material, aplicando-se na actividade directa desenvolvida pelas empresas, bem como nas relações empresariais e cadeias de valor, incluindo, assim, fornecedores, subcontratados, e empresas participadas (cfr. Considerando n.º 19). Os conceitos de “relações empresariais” e de “cadeia de valor” são definidos no artigo 3.º da Proposta de Directiva, nos termos seguintes: “2) «Relações empresariais»: as filiais e as relações comerciais de uma empresa ao longo da sua cadeia de valor, incluindo fornecedores e subcontratantes, que estejam diretamente ligadas às operações comerciais, aos produtos ou aos serviços da empresa”; “5) «Cadeia de valor»: todas as atividades, operações, relações empresariais e cadeias de investimento de uma empresa, incluindo as entidades com as quais a empresa tenha uma relação empresarial direta ou indireta, a montante e a jusante, e que: a) Forneçam produtos, partes de produtos ou serviços que contribuam para os próprios produtos ou serviços da empresa; ou b) Recebam produtos ou serviços da empresa”.

Este compromisso – com o figurino, como se evidenciou, de uma verdadeira obrigação em sentido técnico-jurídico – tem de ser vertido numa estratégia, a publicitar por via adequada, quer interna, quer externamente. Pretende-se, deste modo, assegurar a transparência dos procedimentos e políticas, assim como a correspondente acessibilidade e previsibilidade (cfr. Considerando n.º 30, e artigo 6.º da Proposta de Directiva). Para tal, é fundamental assegurar a formação necessária e pressuposta pela operacionalização dos procedimentos e da estratégica de diligência concretamente aprovada.

O cumprimento do dever de diligência exige uma análise de risco, adequada ao volume de negócios e ao sector de actividade, assim como a implementação de uma estratégia qualificada por parte das empresas. Para tal, tem de incorporar auditorias periódicas dirigidas, precisamente, a avaliar o nível de respeito pelas directrizes fixadas (cfr. Considerando n.º 30; e artigo 8.º da Proposta de Directiva), e assentar num processo contínuo e dinâmico, com actualização permanente. Por isso, não deve ser “um mero exercício burocrático”, mas consistir numa avaliação de risco e efeitos, que são dinâmicos (cfr. Considerando n.º 34).

Por outro lado, a concretização da estratégia em matéria de dever de diligência não prescinde de um exame casuístico, mediado pelo princípio da proporcionalidade, que conduz a relevar a gravidade e/ou a probabilidade de uma empresa causar efeitos negativos, contribuir para esse resultado, ou estar directamente relacionada com o mesmo, considerando o grau de participação para o efeito prejudicial identificado, à luz de indícios como a dimensão da empresa, a natureza e o contexto particular da sua actividade (nomeadamente, geográfico), o modelo de negócio, a posição na cadeia de valor e a categoria dos produtos e serviços (cfr. Considerando n.º 18, e artigo 4.º da Proposta de Directiva). O processo e os procedimentos a implementar em concreto não estão submetidos a um padrão uno, pelo que a particular dimensão da empresa, a correspondente natureza e contexto, e outras circunstâncias específicas podem legitimar processos de complexidade distinta.

Os membros dos órgãos de administração, de direcção e de supervisão da empresa são responsáveis pela adopção e implementação adequadas das estratégias de sustentabilidade social, ambiental, e de boa governação (cfr. Considerando n.º 45 da Proposta de Directiva), para o que se encoraja, no caso particular das grandes empresas, a criação de comités consultivos especializados (cfr. Considerando n.º 56 da Proposta de Directiva).

Privilegia-se o diálogo efectivo e a resolução convencional dos problemas diagnosticados na relação com “partes interessadas”, isto é, “as pessoas e os grupos de pessoas cujos direitos ou interesses possam ser afetados pelos efeitos negativos, potenciais ou reais, nos direitos humanos, no ambiente e na boa governação provocados por uma empresa ou pelas suas relações empresariais, bem como as organizações cuja finalidade estatutária seja a defesa dos direitos humanos, incluindo os direitos sociais e laborais, do ambiente e da boa governação” – cfr. artigo 3.º, 1); e Considerando n.º 15 da Proposta de Directiva. Entre estes, incluem-se trabalhadores e seus representantes, comunidades locais, crianças, povos indígenas, associações de cidadãos, sindicatos, organizações da sociedade civil, accionistas. A referida intervenção dialogada é concretizada no Considerando n.º 38, e no artigo 5.º da Proposta de Directiva.

Por último, a estratégia a observar pelas empresas tem de incluir um mecanismo de reclamação, a nível de empresa ou de sector, com a função de receber, registar e analisar as reclamações comunicadas (cfr. Considerando n.º 47, e artigo 9.º da Proposta de Directiva). Em termos complementares, prevê-se a “garantia do anonimato ou da confidencialidade dessas preocupações, conforme adequado, em consonância com o direito nacional, bem como a segurança e a integridade física e jurídica de todos os queixosos, inclusive dos defensores dos direitos humanos e do ambiente” (cfr. Considerando n.º 43 da Proposta de Directiva).

A frustração deste novo paradigma é sancionada e tem, por isso, implicações significativas no plano reputacional: uma empresa que não observe, em termos efectivos, uma pauta valorativa exigente, e que adopte práticas e procedimentos com ofensa das injunções em matéria de direitos humanos, de sustentabilidade ambiental e de boa governação, para além de poder ser categorizada como “menos atractiva” para o mercado, é susceptível de incorrer em responsabilidade jurídica. Desenha-se, assim, uma nova tipologia de contencioso, fundado na prática de factos (na modalidade de acção ou de omissão) contrários aos direitos humanos, ao ambiente, e à boa governação. Com efeito, a inobservância das medidas e dos procedimentos descritos pode fundamentar responsabilidade contra-ordenacional (admitindo-se que as coimas a aplicar oscilem em função de critérios como, v.g., o volume de negócios da empresa), para além da responsabilidade civil, a apurar nos termos do Direito nacional competente (cfr., respectivamente, artigos 18.º e 19.º da Proposta de Directiva). Admite-se, bem assim, que as empresas possam ser visadas por outras sanções administrativas (v.g., a exclusão, temporária ou indefinidamente, de contratos públicos, de auxílios estatais, e de outros regimes de apoio público – cfr. artigo 18.º, n.º 2 da Proposta de Directiva).

Propõe-se, ainda, que, em Anexo à Directiva, se listem os efeitos negativos nos direitos humanos, assim como para o ambiente e para a boa governação (temporários ou definitivos) concretamente relevantes para as empresas. De acordo com o artigo 21.º da Proposta de Directiva, prevê-se um prazo de transposição de 24 meses após a sua entrada em vigor.

Em conclusão, as práticas a observar em matéria de dever de diligência e de responsabilidade empresarial, num horizonte temporal próximo, têm um figurino bicéfalo: por um lado, devem ser aptas a prevenir a ingerência prejudicial nos direitos humanos, no ambiente, e na boa governação; por outro lado, têm de incorporar mecanismos adequados e eficazes para reagir (por via da correspondente mitigação e resolução) aos efeitos negativos concretamente causados. A empresa “do futuro” tem, por conseguinte, de ser responsável, sob pena de ser responsabilizada.