Suspensão Voluntária da Distribuição de Dividendos em Tempos de Pandemia

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  1. O alastrar rápido e insidioso da doença COVID-19, que a Organização Mundial de Saúde declarou como uma pandemia a 11 de março de 2020, criou ondas de choque políticas, económicas e sociais de grande intensidade e cujo balanço só poderá ser feito daqui a alguns meses.
  2. Na generalidade dos países europeus, o alastrar da doença espoletou, com intensidades e timings distintos, a imposição de medidas restritivas da mobilidade e da atividade de muitos setores económicos, destinadas a promover ou a impor o confinamento geral da população. As restrições impostas atingiram vários setores e operadores económicos com grande intensidade, sendo tal impacto agravado pela imprevisibilidade da situação e das medidas.
  3. Adicionalmente, como resultado direto das referidas medidas, muitos trabalhadores foram impossibilitados de exercer a sua atividade de forma normal. Com exceção dos trabalhadores que continuaram a exercer a sua atividade por teletrabalho, muitos viram-se sujeitos a uma situação de lay-off, em que o respetivo empregador os dispensou ou reduziu o seu trabalho, diminuindo também o seu salário.
  4. O aparecimento da COVID-19 e a imposição das medidas já mencionadas coincidiu com a época habitual de elaboração e preparação dos vários documentos de prestação de contas por muitas sociedades anónimas e consequente distribuição dos lucros do exercício anterior, o que pôs na ordem do dia a discussão sobre a pertinência da distribuição de lucros do exercício ou dividendos (o texto dirá apenas respeito a sociedades anónimas, pelo que se empregará a expressão corrente dividendos numas ocasiões ou lucros do exercício noutras, quando mais apropriado).
  5. Neste breve texto, pretende-se: (i) analisar a abordagem de entidades reguladoras e do legislador à distribuição de dividendos nas sociedades anónimas em tempos de COVID-19; e (ii) face à inexistência de uma proibição legal de distribuição de dividendos, clarificar o regime legal do que se vai referindo na imprensa como “suspensão” voluntária da distribuição de dividendos.

 

COVID-19 e Distribuição de Dividendos: Entre a Proibição e a Indiferença

  1. Tendo a COVID-19 alastrado durante a época do ano em que a grande maioria das sociedades anónimas nacionais deliberam a aplicação dos resultados do exercício social entretanto encerrado, as consequências económicas significativas resultantes da pandemia para a generalidade do tecido empresarial português deixaram muitas dessas sociedades que, em circunstâncias normais estariam numa posição de poderem distribuir o lucro do exercício passado sob a forma de dividendos, num dilema: distribuir ou não distribuir? Com efeito, face à situação de incerteza económica gerada pela pandemia e à circunstância de um número considerável de trabalhadores encontrar-se em situação de lay-off, a opinião pública encontrava-se particularmente sensível à distribuição de dividendos por muitas sociedades anónimas, em especial as instituições de crédito.
  2. Apesar da referida perceção, e conforme antecipado supra, o legislador nacional optou por não impor qualquer proibição à distribuição de dividendos durante este período.
  3. Tal não impediu outras entidades públicas de incentivar, através de recomendações e de comunicados menos cogentes, uma atmosfera propícia a que os acionistas de muitas sociedades decidissem pela suspensão da distribuição dos dividendos nesta altura.
  4. A 27 de março, o Banco Central Europeu emitiu uma recomendação onde pedia aos acionistas das instituições de crédito que participassem no “esforço coletivo” de apoiar a economia, usando o capital conservado para “apoiar famílias e pequenas empresas”, devendo suspender temporariamente a distribuição de dividendos relativos a exercícios que abranjam 2019 e 2020[1]. Tal recomendação encontra-se em vigor até 1 de outubro de 2020, sendo prorrogável.
  5. Na mesma altura e em contexto nacional, o Banco de Portugal[2], a CMVM[3] e a ASF[4] vieram emitir recomendações em sentidos semelhantes às instituições de crédito, às sociedades emitentes e às empresas de seguros, respetivamente.
  6. Regra geral, as instituições de crédito portuguesas seguiram as recomendações do BCE e do Banco de Portugal e optaram por não distribuir dividendos. Fora do setor bancário, algumas sociedades cotadas optaram por suspender a distribuição de dividendos e outras avançaram, sem prejuízo de críticas de origem essencialmente política.
  7. As referidas suspensões de distribuição de dividendos terão fundamentos diversos e porventura cumuláveis. Para além do poder persuasivo característico da soft law das recomendações já mencionadas, outros fundamentos mais “egoístas” terão tido o seu papel. Com efeito, compreende-se que, face à situação de incerteza que a pandemia trouxe, algumas sociedades prefiram alocar o seu lucro do exercício distribuível a resultados transitados ou reservas disponíveis, para poder contar com uma almofada que amorteça o impacto financeiro negativo e repentino da COVID-19. Outras sociedades, de maior exposição mediática, tê-lo-ão feito por razões de ordem reputacional, pois uma distribuição de dividendos em cenário tão crítico poderá gerar uma reação negativa da opinião pública.
  8. Apesar de não se ter avançado com qualquer proibição ou limitação da distribuição de dividendos, podemos encontrar uma limitação de fonte legal no Decreto-Lei n.º 10-G/2020, de 26 de março, que estabelece uma medida excecional e temporária de proteção dos postos de trabalho (o regime aplicável ao chamado lay-off simplificado), onde se prevê o financiamento público parcial dos custos suportados pelas entidades empregadoras elegíveis quando os seus trabalhadores se encontram em lay-off total ou parcial.
  9. Nos termos da al. d) do n.º 1 do artigo 14.º do referido Decreto-Lei, os apoios nele consagrados cessam imediatamente quando se verifique que o empregador – neste caso uma sociedade – procedeu a uma “distribuição de lucros durante a vigência das obrigações que emergem da concessão de apoio, sob qualquer forma”.
  10. A “distribuição de lucros (…) sob qualquer forma” referida na al. g) do n.º 1 do artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 10-G/2020 parece ser ampla o suficiente para abranger a distribuição periódica de lucros do exercício prevista no artigo 294.º, n.º 1, do CSC e a distribuição de quaisquer bens sociais aos sócios (incluindo resultados transitados de exercícios passados ou reservas disponíveis) ao abrigo do artigo 32.º do CSC.
  11. A distribuição determina a imediata cessação e restituição, total ou proporcional, dos montantes já recebidos ou isentados (artigo 14.º, n.º 1, corpo, do Decreto-Lei n.º 10-G/2020).
  12. Assim, em vez de se optar por uma invasiva e desproporcional proibição absoluta da distribuição de dividendos, optou-se por associar a concessão de apoios do Estado a este covenant atípico e de fonte legal que pressupõe que quem tem folga financeira para distribuir dividendos não carece de apoio do Estado para assegurar os direitos dos respetivos trabalhadores em regime de lay-off

 

O Regime da Suspensão Voluntária da Distribuição de Dividendos

  1. Concluindo pela inexistência de qualquer proibição legal à distribuição de dividendos, foquemo-nos agora no seguinte – ao abrigo de que regime podem as sociedades anónimas “suspender a distribuição de dividendos” i.e., optar pela não distribuição dos lucros do exercício?
  2. O regime da distribuição de lucros do exercício nas sociedades anónimas encontra-se previsto no artigo 294.º, n.º 1, do CSC. Os lucros do exercício correspondem ao acréscimo patrimonial entre o início e o encerramento de um determinado exercício, sendo tal acréscimo distribuível na medida em que: (i) se cubram eventuais prejuízos transitados; e (ii) seja afeto um mínimo de 5% para constituição ou reforço de reserva legal ou eventuais reservas estatutárias (artigos 33.º, n.º 1, 294.º e 295.º, n.º 1 do CSC), devendo ainda respeitar-se os limites impostos pelo artigo 32.º do CSC[5].
  3. O direito de crédito ao dividendo constitui-se na esfera de cada acionista com a aprovação da deliberação de distribuição dos lucros do exercício, que se seguirá à apresentação de uma proposta de aplicação de resultados pelo órgão de administração (cf. artigos 65.º, n.º 1 e 66.º, n.º 5, al. f) do CSC)[6].
  4. O artigo 294.º, n.º 1, do CSC confere aos acionistas o direito de receber pelo menos metade do lucro de exercício distribuível, salvo se for tomada deliberação por maioria de três quartos dos votos correspondentes ao capital social – estará aqui a base legal adequada para deliberar aquilo a que se vem chamando “suspensão dos dividendos” voluntária.
  5. Desde que respeitada a maioria qualificada de três quartos prevista no n.º 1 do artigo 294.º do CSC, os acionistas podem optar por não distribuir quaisquer lucros do exercício. Os lucros de exercício não distribuídos serão geralmente alocados a uma conta de resultados transitados ou de reservas livres, podendo ser posteriormente distribuídos ao abrigo do regime geral da distribuição de bens sociais previsto no artigo 32.º do CSC.
  6. Ora, a decisão de não distribuição de lucros de exercício parece relativamente simples – com uma maioria reforçada de três quartos, os acionistas decidem não distribuir entre si os lucros do exercício relativamente ao qual apreciam os documentos de prestação de contas e a proposta de aplicação de resultados apresentada pelo órgão de administração.
  7. Este regime, com a sua exigente maioria qualificada, tutela de forma equilibrada os acionistas minoritários. Como qualquer acionista, o acionista minoritário terá uma expetativa de receber a sua parte dos lucros do exercício distribuíveis desde que respeitados limites gerais e especiais à sua distribuição, de origem legal ou estatutária e esta maioria tende a assegurar que não veja tal expetativa esvaziada por um acionista maioritário ou um grupo de acionistas maioritário.
  8. No caso das sociedades anónimas, o artigo 294.º, n.º 1, do CSC, indica que os acionistas têm direito a pelo menos metade do lucro distribuível, sem prejuízo da possibilidade de alteração estatutária desse limite[7] – esta disposição confere supletivamente aos acionistas o direito de receber, pelo menos, metade do lucro do exercício distribuível, salvo se for tomada deliberação por maioria de três quartos dos votos correspondentes ao capital social pela redução ou até pela não distribuição.
  9. Tal previsão não colide de forma alguma com a possibilidade de os acionistas, por maioria qualificada de três quartos, optarem por não distribuir os lucros do exercício entre si, tal maioria assegurando alguma proteção dos acionistas minoritários e assegurando a mitigação de um eventual cenário de não distribuição por minorias de bloqueio.
  10. Apesar de parecer tudo bastante simples, alguns autores apontam corretamente que a maioria de três quartos per se não impede que uma determinada deliberação que decida pela não distribuição dos lucros do exercício não possa redundar em deliberação abusiva (e consequentemente anulável, nos termos do artigo 58.º, n.º 1, al. b) do CSC) caso ela não se fundamente no interesse social e tenha como objetivo prejudicar os sócios minoritários através do esvaziamento da sua expetativa de receber lucros do exercício[8]. Sem prejuízo de, em abstrato, o caráter abusivo da deliberação ser sempre possível, face às consequências do alastrar da COVID-19 e às suas consequências económicas, os acionistas que votem favoravelmente à não distribuição terão vários motivos válidos e alinhados com o interesse social para o fazerem, dificultando que um acionista minoritário que tenha votado vencido possa alegar o caráter abusivo da deliberação.

[1] Recomendação do Banco Central Europeu, de 27 de março de 2020, relativa à distribuição de dividendos durante a pandemia do COVID-19 e que revoga a Recomendação BCE/2020/1 (BCE/2020/19), disponível aqui.

[2] Comunicado do Banco de Portugal sobre recomendação de não distribuição de dividendos, 1 de abril de 2020, disponível aqui.

[3] Recomendação da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários “CMVM recomenda a adoção de princípios de sustentabilidade e transparência na informação ao mercado e nas políticas e de dividendos e de gestão de crise”, 14 de abril de 2020, disponível aqui.

[4] Nota de Informação da Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões, “Medidas de flexibilização e recomendações no âmbito da situação excecional relacionada com o surto pandémico Coronavírus/Covid-19”, 30 de março de 2020, disponível aqui.

[5] Vide, sobre o conceito de lucros do exercício e de lucros do balanço e a distribuição daqueles, entre outros, Menezes Cordeiro, “Anotação ao artigo 294.º”, em Código das Sociedades Comerciais Anotado (coord. António Menezes Cordeiro), 2ª ed., Coimbra, Almedina, 2011, 840; Tarso Domingues, “Anotação ao Artigo 32.º” em Código das Sociedades Comerciais em Comentário (coord. Jorge Coutinho de Abreu), 520-538, 524-527; Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, Vol II., 6ª ed., Almedina, Coimbra, 2019, 427-428; Paulo Olavo Cunha, Direito das Sociedades Comerciais, 6ª ed., Coimbra, Almedina, 2016, 343-344; Ana Sá Couto/Joana Torres Ereio, “Transmissão do Direito ao Dividendo”, Actualidad Jurídica Uría Menéndez 29-2011 (2011), 68-78, 70-71

[6] Neste sentido, Menezes Cordeiro, “Anotação ao artigo 294.º” cit., 840. Contra, Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial cit., 434, que entende que verificando-se no balanço aprovado que existe lucro do exercício distribuível, se os sócios não deliberarem com a maioria qualificada distribuir menos de metade, fica “a sociedade obrigada a distribuir aos sócios metade do lucro do exercício” tendo os sócios direito a essa distribuição.

[7] A margem concedida pela lei aos acionistas para moldar este regime é controvertida. Vide, entre outros, em posição restritiva, Olavo Cunha, Direito das Sociedades cit., 345-348, que entende que o artigo 294.º, n.º 1 é uma norma imperativa no que respeita ao mínimo a distribuir, podendo os sócios estabelecer nos estatutos um mínimo superior ao mínimo legal, mas não o contrário. Em posição permissiva, vide, entre outros, Menezes Cordeiro, “Artigo 294.º” cit., 840, indicando uma ampla margem de conformação estatutária, com respeito por exigências de ordem pública.

[8] Olavo Cunha, Direito das Sociedades cit., 349; Tarso Domingues, Variações sobre o Capital Social, Almedina, Coimbra, 2009, 270 e ss., indicando que uma deliberação de não distribuição de lucros de exercício não justificada pelo interesse social que resulte em prejuízo para os acionistas minoritários será abusiva e por isso anulável.