O estímulo aos mecanismos de denúncia interna de irregularidades (whistleblowing) começou a ganhar os favores regulatórios há uma década, altura em que os escândalos contabilísticos Enron e Worldcom foram detectados graças à investigação e comunicação efectuadas por funcionárias dessas empresas, as muito celebrizadas Sherron Watkins e Cynthia Cooper.
Desde então, porém, a apreciação destes mecanismos tem vindo a sofrer uma ligeira modificação. Em causa está o número elevado de denúncias infundadas ou alarmistas, sobretudo quando são protegidas pelo anonimato. Nos EUA, que impuseram sistemas de whistleblowing obrigatórios, estudos apuraram que a percentagem de denúncias fundadas é muito baixa (não excedendo, em média, 10 %). Nesse contexto, ficaram documentados múltiplos casos de pessoas cuja carreira profissional resultou arruinada por obra de acusações internas difamatórias.
Mercê deste enquadramento, entre nós a Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) considerou a propósito que, pela gravidade que pode representar para os titulares dos dados e para os princípios da boa fé, lealdade e confiança, os sistemas de denúncia deveriam ser circunscritos aos domínios da contabilidade, da auditoria, da prevenção da corrupção e do crime bancário e financeiro.
Neste cenário, quanto às sociedades cotadas, a solução adoptada pela CMVM, em vez de prescrever orientações directas quanto ao tema, é a de recomendar que cada sociedade desenhe o seu próprio sistema de comunicação de irregularidades, adaptado às suas especificidades, e esteja obrigada à sua divulgação ao público.
A recente alteração à Lei bancária, porém, vai mais longe. De um lado, impõe deveres de denúncia aos administradores e aos membros de órgãos de fiscalização de bancos, a resultar em comunicações junto do Banco de Portugal. De outro lado, estabelece deveres de denúncia interna aos colaboradores nas áreas de controlo interno. Por fim, torna-se obrigatório que os bancos estabeleçam sistemas adequados de recepção, tratamento e arquivo de denúncias internas de irregularidades. Ponto essencial deste regime é que as denúncias feitas por colaboradores são objecto de uma dupla garantia, quer quanto à preservação da confidencialidade das participações, quer quanto à proibição de acções disciplinares, civis ou criminais retaliatórias das denúncias efectuadas.
Esta protecção apenas se aplica quando as irregularidades denunciadas sejam susceptíveis de colocar o banco em situação de desequilíbrio financeiro. Caso a denúncia se refira a outras circunstâncias, a imunidade do denunciante não deve ser considerada assegurada.
Embora transcendam largamente o âmbito reconhecido pela CNPD quanto aos sistemas de denúncia de irregularidades, estas novidades orientam-se no sentido fundamentalmente correcto, ao visar fortalecer o ambiente de cumprimento nos bancos. Paralelamente, operam como um poderoso aumento da responsabilidade dos membros dos órgãos de fiscalização respectivos, a quem cabe apreciar as queixas e avaliar a pertinência dos seus fundamentos. É nas suas mãos que repousa, afinal, o equilíbrio do novo regime, para que resulte num instrumento de transparência – em termos de prevenção e detecção interna de irregularidades – e não se converta num inadvertido meio de credibilização de queixas infundadas.