Um princípio de máxima eficácia?… e outras reflexões

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1. No ponto I.2. do Projecto de Código de Governo das Sociedades, actualmente em discussão pública, o IPCG ocupa-se das coordenadas gerais que devem pautar o funcionamento dos órgãos da sociedade.
Trata-se de uma recomendação genérica, inserida na Parte Geral do Projecto, aplicável a todos os órgãos da sociedade e comissões de constituição obrigatória ou facultativa (I.2.1), isto é: a todos os centros de decisão empresarial relevante para a estrutura de governo societária.

2. Na observância da dupla estrutura deôntica princípios/recomendações – marca de água do Projecto (que reclama um ponderação crítica genérica e aprofundada) – o ponto I.2. começa por enunciar o seu princípio informador:
“As sociedades devem ser dotadas de estruturas decisórias claras e transparentes e assegurar a máxima eficácia do funcionamento dos seus órgãos e comissões.”
Retenha-se que a enunciação dos princípios, na proposta do IPCG, serve um duplo escopo: (i) ser critério interpretativo-aplicativo da recomendação; e (ii) oferecer um “fundamento qualitativamente relevante para o explain” (Preâmbulo, 4).

3. Este princípio, tal como se encontra formulado, deixa-nos algumas dúvidas quanto à sua adequação ao duplo escopo assinalado.
Com efeito, dele ressaltam três notas: clareza, transparência e eficácia.
Ora, não se duvida que a máxima eficácia do funcionamento dos órgãos e comissões da sociedade seja um escopo transversal a todo o governance. Todavia, não cremos que tal desiderato possa ser formulado como princípio deôntico para a estruturação do governo das sociedades.
Com efeito, a eficácia é essencialmente um conceito técnico-instrumental e tendencialmente a-valorativo. Compare-se, por exemplo, a noção de máxima eficácia com as próprias noções de clareza e transparência ou com a ideia de tratamento equitativo dos accionistas (I.1.), adequação da informação (I.3.) e dever de parte em conflito não interferir no processo de decisão (I.4.), por exemplo.
A densidade valorativa e deôntica é radicalmente distinta.
Torna-se, portanto, difícil que uma qualquer ideia de máxima eficácia (em que consiste?) possa ser fundamento qualitativo para o explain ou, pelo menos, suficientemente concreto para que possa permitir um juízo diferenciador entre opções de governação.

4. Também não se afigura que a noção de máxima eficácia no funcionamento dos seus órgãos e comissões possa ser útil como critério interpretativo-aplicativo da recomendação. Desde logo, porque o que se recomenda em I.2.1. a I.2.4 está fundamentalmente associado às preocupações pela clareza e transparência no funcionamento dos órgãos e não tanto com a sua máxima eficácia.
Com efeito, em I.2.1 é recomendado:
– que existam regulamentos internos (I.2.1), publicados no sítio da internet e mencionados no Relatório de Governo (I.2.2.);
– que sejam elaboradas actas das reuniões dos órgãos sociais e comissões (I.2.1.);
– que seja divulgados os dados referentes à composição, número de reuniões anuais dos órgãos de administração, fiscalização e da comissão de remunerações, a percentagem média de membros presentes em cada reunião e a percentagem de presenças de cada membro na totalidade das reuniões, no sítio da internet e no Relatório de Governo (I.2.3.); e
– que se encontre previsto um adequado mecanismo de prevenção, detecção e comunicação de irregularidades (I.5.).
À interpretação/aplicação destas recomendações é útil a referência a princípios de clareza e transparência, tanto mais quanto nos movemos no âmbito da Parte Geral e muitas desta orientações serão melhor densificadas ao longo do Projecto de Código.
Já não se vislumbra em que é que a máxima eficácia do funcionamento dos órgãos e comissões pode ajudar os agentes na escorreita adopção das recomendações propostas.

5. Cremos, portanto, e atendendo à importância objectiva das recomendações, que melhor seria reduzir o princípio informador de I.2. à conveniência de as sociedades serem dotadas de estruturas decisórias claras e transparentes.
É esse o núcleo central da recomendação e o essencial no plano regulatório.

6. Por fim, diga-se que a recomendação I.2.4. merecia ser autonomizada.
A prevenção, detecção e comunicação de irregularidades é um elemento tão estrutural quanto delicado do bom governo das organizações (veja-se, com desenvolvimento, a anotação de Paulo Bandeira à recomendação 2.1.4. do Código de Governo das Sociedades in Código do Governo das Sociedades Anotado, coord. Paulo Câmara, 2012).
O Projecto apenas prevê esta matéria em I.2.4.
Ainda que a orientação do IPCG seja adoptar uma recomendação mais genérica do que o que já prevista no Código de Governo das Sociedades (2.1.4), o que permite questionar a sua real utilidade, sempre ficaria a ganhar o Projecto se autonomizasse a recomendação. Tanto mais, que a dupla estrutura princípios/recomendações lhe permitiria formular princípios próprios sobre esta irregularidades, específicos quando comparados com uma noção geral de clareza e transparência.

7. As observações que aqui deixamos não desdizem do mérito do Projecto, cuja vinda a lume apenas podemos saudar com imenso entusiasmo… É apenas um contributo para a reflexão sobre um instrumento que se augura de utilidade máxima no (bom) governo das sociedade em Portugal e no espaço lusófono.

 

Escrito por Diogo Costa Gonçalves