A evolução do surto pandémico, que tão agudas preocupações causa às empresas e à economia em geral, suscita desafios importantes em termos de corporate governance.
Em primeiro lugar, neste contexto particularmente exigente torna-se claro que os deveres fiduciários dos administradores se estendem não apenas à tutela dos interesses dos acionistas, mas também à proteção dos trabalhadores e da comunidade em geral. Fica, assim, confirmado que as empresas devem ser governadas de acordo com o propósito (corporate purpose) de cuidar de todos aqueles que são afetados pela sua atividade. A importância do propósito societário, que está na base de diversas tomadas de posição internacionais recentes (de que destaco o projeto Future of Business no Reino Unido e a Declaração da Business Roundtable nos EUA), adquire, assim, neste âmbito uma inegável atualidade.
Como concretização destes deveres na atual conjuntura, revela-se muito importante que o órgão de administração adote e faça aplicar com diligência os planos de contingência de acordo com as instruções das autoridades de saúde. Estes planos devem incluir: a) um plano estratégico de resposta à pandemia; b) a identificação de medidas preventivas; e c) a definição do procedimento interno a observar em caso de suspeita de contaminação. Os planos de contingência devem ser encarados como instrumentos organizativos a moldar e a ajustar segundo o objeto e o momento da sua aplicação. Devem, assim, ser adaptados às especificidades de cada sociedade (incluindo a utilização do teletrabalho na medida adequada) e devem ser atualizados sempre que necessário, nomeadamente em função da evolução do surto pandémico ou das orientações da DGS. Mostra-se ainda necessário assegurar a divulgação dos planos de contingência aos colaboradores, através de informação clara e completa.
Para o cumprimento integral e rigoroso dos planos de contingência revela-se decisiva não apenas a atuação dos líderes empresariais (de acordo com a máxima “tone at the top”) mas também a cultura de cada sociedade, em termos transversais e contínuos, do topo à base. Cada colaborador(a) deve dar o exemplo de responsabilidade cívica que a empresa e os seus stakeholders dele(a) esperam.
Por outro lado, este surto epidémico surge em pleno período de realização de assembleias gerais anuais. Neste contexto, importa assinalar que o DL 10-A/2020 permite (mas não obriga) que as assembleias gerais anuais das sociedades comerciais, das associações ou das cooperativas sejam adiadas até 30 de junho de 2020. Nos casos de realização inadiável das assembleias gerais, revela-se importante recomendar a utilização de voto eletrónico por correspondência. Trata-se de uma forma de votação prevista na lei há mais de vinte anos. Corresponde, nessa medida, a um expediente de exercício do direito de voto muito testado e cuja utilização neste contexto deve ser fortemente encorajada.
Além disso, há algumas boas práticas a recomendar que sejam adotadas na assembleia geral, caso a sua realização seja inadiável, designadamente a desinfeção das instalações e dos materiais utilizados, o distanciamento dos lugares atribuídos aos participantes e a exigência de adequados procedimentos de higienização dos participantes para acesso ao local onde irá decorrer a assembleia geral.
Por fim, quanto à governação de empresas financeiras será importante manter ativo o plano de continuidade de negócios como parte do sistema de gestão de riscos. Esse plano deve incluir uma avaliação dos riscos operacionais e da capacidade de continuar a operar de forma ordenada, assim como a estratégia de recuperação mais adequada, como recordou recentemente a CMVM.
Nestes tempos de incerteza, encontramos amparo na conclusão de que a atuação conscienciosa e diligente das empresas portuguesas, guiadas por um propósito firme e por princípios de sã governação, será certamente decisiva para a superação do atual surto pandémico, em benefício do bem comum.